Dez anos depois do seu primeiro conto publicado, “Lua – Polaroide”, e já com uma extensa e muito consistente presença na poesia portuguesa, surge um pequeno livro azul celeste na obra de Filipa Leal (FL), publicado na colecção Contos Singulares (Relógio d’Água).
E no entanto, o seu interior, o conto, neste regresso de FL à prosa, não é nada celestial. Mas também não é diabólico. É mundano, sim. Trata daquilo que é igual em todos nós, dos nossos lugares reconhecíveis, espaços sentimentais onde frequentemente nos encontramos.
Às vezes, são buracos fundos, e não saíamos de lá muito facilmente, outras vezes são desertos de aridez que é preciso atravessar, às cegas, calcando a areia sem trilhos nem orientação. A vida, costuma dizer-se, não vem com manual de instruções e mesmo se viesse, não somos bons alunos de coração – e de tantos os sentidos que a expressão anterior pode conter, nenhum deles é o cardíaco.
Quer dizer, o coração farta-se de bater, nesta narrativa, mas qualquer arritmia, palpitação ou taquicardia não deve ser imputada ao músculo estúpido, mas às derivas dos que entopem as veias de entulho amoroso. Como um pêndulo de Foucault, não é ele que gira, mas os movimentos rotativos supremos que o fazem oscilar.
E pode ser este livro pequeno em dimensões, mas cabe lá muita vida dentro, muitas emoções, muito nossas, muito humanas, muito globais. Os nossos sentimentos e, sobretudo, a forma como nós somos no outro – será esse o mote em redor do qual gira toda a trama e todo este bando de personagens desgovernadas. Porque, afinal, ser é apenas (ou tanto) isto: encontrarmo-nos no outro.
E além da aparência de livro celestial, além da aparência de pequeno livro, também este conto, no seu conteúdo, trata de aparências: nada daquilo que parece é. Ou antes, parecer até parece, mas existe esta força obsessiva em encaixar a realidade naquilo que os olhos querem forçosamente ver.
O nosso olhar não é de confiança, e quem inventou essa máxima de ver para crer (parece que terá sido São Tomé), bem poderia revisitá-la. Funcionamos muito mais ao contrário: cremos para vermos. E consumimos antes de agitar. E não, não se trata de um mero jogo de palavras.
Encontros e desencontros
Primeiro, refira-se aquilo que o conto da FL não é, porque muito melhor, às vezes, se descreve qualquer coisa pelo que se deixa de fora da linha de circunscrição. Há aqui uma aparência de thriller policial negro, afinal é preto o vestido que tradicionalmente é branco, mas não é só isto o livro de Filipa Leal.
Há uma aparência de tragédia – aliás, ela vai-se anunciando desde o início de forma bastante teatral, semeando a autora indícios, que nós, leitores, vamos colhendo, como sementes, e regando com os nossos contextos, com a nossa própria maneira de ver o mundo, para fazer crescer a planta carnívora final.
Também há uma aparência de comédia de costumes ou de equívocos, mas os equívocos, se calhar, não são assim tão cómicos quanto aparentam. Parece que a vida é feita disto, de incompreensão, de incapacidade de ler os sinais que os outros exibem, por vezes, a acenar desesperadamente, e mesmo assim não queremos ver, ou não quereremos crer.
É isto a vida, “a arte do encontro”, como dizia Vinícius de Morais, “embora haja tanto desencontro pela vida”. Parece ser esta a regra. Aliás, andamos sempre desencontrados, como à espera do tal comboio na paragem do autocarro.
Dizia Philip Roth, que a própria FL cita a outro propósito: “Viver é não perceber nada do outro, é entender o outro erradamente, depois erradamente outra vez, depois ainda mais erradamente, para por fim, reconsiderando tudo cuidadosamente, entender mais uma vez as pessoas de forma errada. É assim que sabemos que continuamos vivos: estando errados”.
E irremediavelmente sós.
Ou seja, como é que podemos ter a ambição de comunicar com extra-terrestres, se andamos há 200 mil anos a incompreendermo-nos uns aos outros? Ou então, não intuindo os alçapões da vida dos outros mesmo quando eles estão à beira dos nossos passos.
Claro que a escritora vai tecendo muito habilmente a história, guinando quase sempre para o lado cómico ou da desdramatização. De forma desconcertante, e o livro está cheio de desconsertos e desconcertos, e mais uma vez não se trata de um jogo de palavras.
São twist points ou, noutros casos, os chamados alívios cómicos ou sarcásticos para quebrar o drama. E que surgem, em certas ocasiões, em linguagem parentética: “Branca foi sempre um ser humano surpreendente como a conta da luz”. A Filipa Leal é uma mestra a introduzir pormenores como rastilhos.
“No fim, celebra-se a amizade. E essa coisa é que é linda”
O conto está salpicado de referências: o já referido Philip Roth (O Animal Moribundo). Também os Peanuts, de Schulz (Snoopy), Pina Baush, a pintora Georgia O’Keefe, os escritores Lewis Carroll, ou Tolstoi e a sua célebre frase: “Se queres ser universal, pinta primeiro a tua aldeia”.
Na senda de Annie Arnaux quando considerava que história pessoal é história coletiva… Sendo ou não esta a aldeia da Filipa Leal, a tribo que a habita é hipster-urbana: estas pessoas jogam padell, usam o tinder, comem gaspacho de abacate…
Para além de todas as intertextualidades, há outra referência muito importante neste conto. A da Janela Indiscreta, de Hitchcock. Geralmente associa-se este filme ao voyeurismo (a câmara está sempre subjetiva), ao suspense, ao poder das imagens que tem um valor impressionante face às palavras, à simbologia da janelas, dessas transparências que denunciam, da devassa da vida privada.

James Stewart, o fotógrafo de viagens e aventuras, que está preso no seu apartamento com uma perna partida e engessada e então passa o tempo a espiar a vida da vizinhança, às vezes tentando desviar do seu ângulo de visão a lindíssima Grace Kelly, Lisa Carol Fremont, a tal que só usa cada vestido uma única vez – tal como os vestidos de noiva servem para apenas uma exclusiva ocasião.
E uma das interpretações sobre o filme é a de um homem parado, num impasse de vida, porque não consegue dar o passo que se espera dele, não só para caminhar, mas para casar.
O filme é sobre a relutância em avançar para o casamento. Ele não quer casar com aquela mulher encantadora, ele hesita em casar com Grace Kelly, ele desvia todas suas atenções para todos os assuntos alheios, os dos seus vizinhos, para evitar olhar para o seu.
Sob esta perspectiva, o filme dá imensas pistas subtis, conversas laterais à trama central, a própria aliança que é prova de crime, etc. James Stewart acaba, como se sabe, com as duas pernas engessadas, ele que era um fotógrafo viajante, agora ainda mais refém de Lisa e do adiado casamento.
Quanto ao famoso travelling com que Hitchcock abre o filme, correndo ao longo de todas as janelas até se deter na cara adormecida de James Stewart, por vezes também parece que este conto de FL nos é narrado como um travelling que passa pelas personagens.
Ou um drone, que vai dando indicações cénicas, colocando banda sonora, sugerindo os estados de alma das personagens. Aliás, o uso do presente do indicativo indicia esta perspetiva de guião, como se todos fossemos uma pouco James Stewart a assistir às andanças destas personagens, que se casam, descasam, desencontram-se, adoram-.se, odeiam-se, incompreendem-se.
No fim, celebra-se a amizade. E essa coisa é que é linda