Nenhum património mais precioso no país do que aquele que se angaria com a Revolução. A vocação iluminista do 25 de Abril, com sua intenção de Liberdade e Igualdade, é o único modo decente de se começar qualquer tipo de projeto de comunidade. Não há melhor ponto de partida, como não pode haver destino mais humano do que aquele que pretende chegar à construção de uma paridade próspera, uma integração que não impeça ninguém de se potenciar e dignificar.
Os 50 anos que passam desde a Revolução de 25 de Abril são a idade fundamental do país de vocação decente. Digo assim, para sublinhar a esperança enorme na lucidez daquela conquista, porque quero que seja claro o passado de glórias torpes, sangrentas, e quero que apenas seja possível conceber que avancemos sob a premissa da garantia universal dos direitos fundamentais. A construção da ideia de Justiça é o molde sine qua non que subjaz a uma sociedade não agressora. Todos os regimes apenas se legitimarão perante o estrito cumprimento de uma ideia limpa de Justiça para todos. E ela só se torna plausível no Portugal pós-Revolução. A idade do país que importa é esta. A que verdadeiramente importa, por ser aquela que permite finalmente trabalhar uma noção de país para todos sem exceção.
No meu tempo de vida, privilegiado por acontecer quase por inteiro em Democracia, jamais julguei ver o regresso da presença política fascista. Proibida pela Constituição, a defesa podre de valores racistas, de exclusão, misóginos, homofóbicos, a simples ideia de que os pobres são-no por vontade própria, por falta de trabalho ou de esforço, é algo que pensei ver sanado no meu mundo. Não seria algo de um regime político. Para mim, tornara-se uma questão de maturação humana, uma espécie de tempo que passara como havia passado a queima das mulheres, os enforcamentos em praça pública, os cristãos atirados aos leões. Pensei que a humanidade ocidental, ou ao menos a do nosso país, tinha definitivamente escolhido sê-lo, de facto, humana.
A vergonha de atravessarmos uma efeméride tão relevante com o ruído desumano dos fascistas por toda a parte é só compensada pela evidência cada vez mais clara de necessitarmos de lembrar o quanto foi certa a Revolução e o quanto a cada dia a defesa da Democracia se impõe. Se alguém sobrou ainda demente do ódio aos outros, ou se mais alguém adoeceu, é fundamental que se redobrem os esforços perante a certeza de que não há como recuar da Democracia, e não há como voltar a aprisionar os costumes no que respeita à identidade de cada um.
Que cansaço, a necessidade de voltar a justificar famílias e cores de pele, o género das mulheres, a sua autodeterminação, o império da educação, de como deve seguir a ciência e ser entregue a todos, sem exclusão, para redimir condições sociais e atribuir ferramentas a cada um segundo suas capacidades e interesses. Que cansaço, a necessidade de voltar a dizer o óbvio, e a defender a simples integração, o respeito pelos direitos fundamentais, o respeito pelo mais elementar da humanidade.
Este é o aniversário que me importa. O aniversário do meu país que me importa. Todos os outros foram apenas a preparação para este, que se impõe, como se 800 anos apenas ensaiassem a glória de chegar a 1974. É este o aniversário do país que se vocaciona à decência. Como tudo ainda por cumprir, mas com tudo no horizonte. Um país, afinal, de 50 anos de idade. Oitocentos anos de formação para um nascimento convicto recente. É o que mais me importa defender. Que nada de 24 de abril nos faça falta. O que falta é tudo posterior e cá estaremos para o cumprir. Contra o ruído e contra a demência. A Revolução é todos os dias. Contra todo o esquecimento e contra toda a má fé. Todos os dias. Sem fim. J