O tom é elegíaco e melancólico, por vezes triste e sombrio, mas na justa medida em que, por contraste, também se afirma lúdico, divertido e alegre. Em O Quarto Vazio, o poeta espanhol Juan Vicente Piqueras assinala a fugacidade da condição humana e algumas perdas recentes, apenas para celebrar o milagre de estar vivo e as oportunidades que se abrem a todo o momento. Assume-se, por isso, como um “caçador de instantes” e das pequenas surpresas do dia-a-dia.
Publicado pela Assírio & Alvim, O Quarto Vazio é o segundo volume de poesia de Juan Vicente Piqueras publicado em Portugal. Antes, a mesma editora lançara Instruções para Atravessar o Deserto, uma antologia com poemas publicado até 2016. Agora revela-nos na íntegra uma obra de 2022, lançada em Espanha já depois da sua passagem por Lisboa como diretor de estudos do Instituto Cervantes (atualmente, é diretor do Instituto Cervantes de Amã, na Jordânia”). Versos de quem por vezes sente que “parti[u] porque estava a mais. / Regresso e a mais continuo”. Mas mesmo a viver há mais de 40 anos fora de Espanha (passou ainda por França, na Grécia, na Argélia), nunca abandonou Los Duques de Requena, pequena aldeia de Valência onde nasceu em 1960. Nas Correntes, O Quarto Vazio é lançado quinta, 21, às 12 e 30, no Cine-Teatro Almeida Garrett.
Jornal de Letras: “Cada dia morremos. Cada día/ es el último dia y ele primero”, lê-se num dos poemas de La Habitación vacía. Escrever é combater ou dar lutar a essa marcha inevitável da vida?
Juan Vicente Piqueras: É muito provável que toda a arte humana, e a filosofia, e as religiões, tenham nascido da consciência de que a vida nos escapa, de que as coisas acontecem na vida uma só vez ou não acontecem de todo, de que sabemos que estamos inevitavelmente a caminhar para o esquecimento, de que o tempo é como a água que nos escorre das mãos. Escrevemos para deixar testemunho deste milagre fugaz, como os noivos que deixam os seus nomes escritos numa parede ou no tronco de uma árvore. O coração que desenhamos durará mais do que o amor e nós próprios.
Terá a poesia especial apetência para fixar momentos, memórias, sensações de quem se sabe vivo e consciente da morte?
Penso que sim, que a poesia é a arte de caçar instantes como o entomologista que caça borboletas, para salvar o que vivemos do esquecimento que seremos, para transformar em música o medo, o mistério, o milagre, a graça de estar vivo.
Podemos dizer que o tom elegíaco e melancólico, com muitas ausências e mortes, é o elemento unificador de todos estes poemas?
Este é um livro insensato e arriscado, porque todos os poemas têm um único tema, a nossa fugacidade, o nosso desaparecimento. Aquilo que ninguém quer, mas que ninguém pode evitar. Alguns amigos disseram-me: “Como te atreves a publicar um livro assim?” Penso que também é um livro em que o tom elegíaco esconde um amor apaixonado pela vida. São poemas onde o memento mori e o carpe diem dançam muito abraçados, amam-se e precisam um do outro. A vida é comovente porque sabemos que acabar, que pode acabar amanhã.
Dentro desse entendimento, como podemos ler a sua divisão em duas partes, “Já não”, “Ainda não”?
Na primeira parte do livro, há pessoas que “já não” estão cá, entes queridos que já partiram e que continuam dentro de mim. Como dizia o grande Pessoa, “A morte é a curva da estrada,/ Morrer é só não ser visto.” Os vivos e os mortos estão sempre juntos. O segundo capítulo fala daqueles que “ainda não” se foram, daqueles que, por milagre, ainda estão vivos. Como dizia Machado, o “hoy es siempre todavía”.
Vê cada livro como uma unidade coesa ou varia de caso para caso?
Cada poema e cada livro tem a sua própria origem, a sua própria história, a sua própria maneira de ser. Como as pessoas. O curioso é que não me sinto autor de livros, mas de poemas, caçador de instantes, artesão de um milagre fortuito. E só a posteriori é que me apercebo que tenho poemas que são da mesma família, no tom, no tema, no ritmo, na obsessão, e então junto-os, releio-os, corrijo-os, ordeno-os e o livro vai nascendo. São duas fases distintas: o nascimento do poema e o do livro.
Como começam os seus poemas? De acasos, como o guardanapo onde se lê “Obrigado pela vista”, ou de ideias?
Também aqui cada poema é um mundo e uma circunstância. Muitas vezes é um verso que vem de repente, como um pássaro, e pousa num ramo do cérebro e a partir daí começa a cantar e os outros versos seguem-se. Por vezes, o verso é uma frase ouvida na rua ou num sonho, ou um capricho do céu. Coleridge dizia que este é o verso que os deuses nos dão e todos os outros estão à volta dele como que a protegê-lo. Pode ser o primeiro verso, ou o último, ou o refrão, não sei. Há outros poemas que nascem de uma imagem, ou de um ritmo, ou de uma memória. Continua a ser um mistério como nasce um poema.
É o título deste livro e o jogo do poema homónimo uma metáfora paras potencialidades da poesia?
Não tinha pensado nisso, mas sim, tem razão. A poesia é a arte de saber ver e nomear tudo o que existe num quarto vazio. Também a arte de cantar o que não está lá. Muitas vezes, o que não está lá, o que não vemos, está mais presente do que o que está à nossa frente. A vida adora paradoxos. O poema que dá título ao livro, por exemplo, é um réquiem lúdico e divertido.
Num comentário sobre a sua poesia, Manuel Vilas apresenta-o como o filho póstumo de Fernando Pessoa (também citado neste livro). Revê-se nesta genealogia?
Para mim, Fernando Pessoa é como o meu pai. Lê-lo foi uma epifania, uma revelação. De repente, descobri que alguém tinha escrito o que eu precisava de escrever. Lembro-me que passei muito tempo a ler Pessoa, a reconhecer-me nele, a agradecer-lhe. Digo sempre, meio a brincar, meio a sério, que sou o filho que Pessoa não teve, o seu heterónimo póstumo. E não só o admiro como poeta, como o amo como pessoa. Se o tivesse à minha frente, dava-lhe um abraço imenso.
Que memórias guarda da sua passagem pelo Instituto Cervantes de Lisboa?
Em Lisboa, infelizmente, só estive dois anos, de 17 a 19. Cheguei muito ferido, destroçado por um divórcio muito traumático. Acho que era um fantasma a vaguear por Lisboa, acompanhado pelo fantasma de Pessoa, como dois amigos fantasmas. À noite, ia a locais para ouvir fado vadio e fartava-me de chorar. Mesmo assim, tive tempo para conhecer pessoas maravilhosas e fazer grandes amigos. Os meus colegas do Cervantes ajudaram-me muito a ultrapassar aquela tristeza sem fim. Da minha casa, na Rua Bica do Sapato, via o “mar de palha”, os comboios que partiam ou chegavam a Santa Apolónia, lia poemas portugueses esplêndidos e escrevia poemas que nunca mais li. Apesar da minha melancolia, ou talvez por causa dela, apaixonei-me loucamente por Lisboa.
Vive há mais de 40 anos fora de Espanha, com passagem por vários países. A ideia de partida continua a ser indispensável para a sua vida e para a sua poesia?
Nasci numa aldeia muito pequena, com apenas 200 habitantes (atualmente são apenas 30) e cresci a venerar a deusa Partir. Precisava de fugir, assombrado pela culpa e por um crime que não tinha cometido. Fugia de uma ferida da qual escorreu a tinta/sangue de todos os meus poemas. Mas agora, nesta altura e nesta idade, com os meus pais mortos, sozinho no meio do deserto, com o pé no estribo, posso dizer que partir é a forma mais estranha e intensa de ficar. A minha aldeia, tal como a minha infância, nunca deixou de estar dentro de mim um único dia, dizendo-me ao ouvido o que eu não queria ouvir na altura. Penso que continuo a ser o camponês que não queria ser.