Desde o primeiro romance que dele lemos, O Caçador do Verão (2015), que notámos em Hugo Gonçalves (HG) uma escrita diferente, um misto de super-grande reportagem jornalística e de captação direta do que, no caos dos acontecimentos, é importante transformar em narrativa, uma escolha que envolve razão e emoção. Que nos perdoem se estamos errados, mas fez-me lembrar a escrita de Fernando Assis Pacheco, sobretudo do seu romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada. Galego da província de Ourense que veio a Portugal ganhar a vida (1993), aliás, autor referido no romance de HG (p. 138).
Hoje, finalizando a segunda leitura de Revolução, maravilhados com a sua capa, que envolve de novo a razão (a opção pelo elemento simbólico do 25 de Abril de 1974, os cravos, e pela ausência da clássica espingarda) e emoção (a figura do rosto simétrico de uma Vénus portuguesa, cujos lábios apetece beijar, celebrando a memória da Revolução, e cujo olhar espelha uma serenidade divina (parabéns à capista), constatamos que os primeiros capítulos dos dois romances, o de Assis Pacheco e o de HG, com um grau de violência inaudito, são duas obras primas, o de Pacheco queimando por vingança um homem no forno, esquartejando-o e dando os pedaços aos cães, para que o vilão desapareça para sempre da face da terra; o de HG replicando realisticamente a cena de tortura de dois PIDES a Maria Luísa (razão), que, para resistir, vai recordando frases do texto de Álvaro Cunhal, Se fores preso, camarada (emoção).
Do ponto de vista da qualidade literária, encontra-se ao nível da cena da tortura no posto da GNR, pelos agentes Escarro e o Escarrilho, em Levantado do Chão, de José Saramago. E assim HG retrata como era Portugal antes da Revolução.
Em Revolução, um leque extensíssimo de sentimentos e emoções humanas são encarnadas nas múltiplas personagens. Desde encarar a vida com displicência, conseguindo passar sempre com elegância entre os pingos políticos da chuva (Gonçalo Storm), até à clássica mulher portuguesa, sacrificando-se para dar um futuro melhor aos filhos (Maria Antónia, filha de um serralheiro, Xavier, que atinge o estatuto de diretora e proprietária de um hotel em Sintra). Desde Pureza, mulher desorientada, incapaz de compreender os acontecimentos, sempre obediente ao marido, que faz dela capacho, recuperando no final a dignidade com um segundo casamento, a Rodrigo de Castro Souza, o rico mau, e a Diogo Bravo Montalvão, o rico bom, que se casará com Pureza, que em jovem se apieda e contemporiza com Bexiga, agitador entre os alentejanos e, em adulto, se torna líder da extrema-direita. Desde Malu, Maria Luísa, radical fanatíssima, comunista, posteriormente radical romântica, integrando a LUAR e depois o PRP-BR, e personagem principal de Revolução, mãe de Nádia, que, por Malu ter estado presa, trata a avó, Maria Antónia, por mãe, e à mãe pelo nome próprio, até Frederico, seu irmão mais novo, uma mente influenciável, volúvel, sem convicções fortes, que anda sempre a correr atrás dos acontecimentos, não pertencendo a nenhum e a ninguém a não ser ao jazz, morrendo por um equívoco – sua grande frase, que se revela verdadeira:: “… tudo o que começo nunca chego a acabar” (p. 179).
E muitas outras personagens menores, cujo conjunto integra, de um modo realista e cronológico, a história do 25 de Abril e das suas datas principais, desde a “Maioria Silenciosa” de Spínola à criação do ELP e do MDLP e ao 25 de Novembro. Talvez sublinhar outra personagem, um estrangeiro, jornalista, Ricardo Walker, considerado pelo PCP um espião da Nato; e outra, Sónia: “Se eu não puder dançar não quero pertencer à vossa revolução” (p. 175). É justamente esta diversidade de personagens que forma a riqueza fantástica do romance. Possivelmente, Frederico tornar-se-á uma das mais importantes personagens literárias criadas depois do 25 de Abril de 1974 – a História da Literatura o dirá.
Ironia, por vezes (assim quase termina o romance, no cap. 16), antecedendo um final totalmente inesperado (que, evidentemente, não revelamos), Revolução, até pela sua extensão, não é um romance que se leia de afogadilho. Pelo contrário, é um romance que se deve ler pausadamente, numa procura de memórias interiores por parte do leitor, sobretudo daquele que viveu os acontecimentos políticos narrados, relembrando tanto o momento da festa quanto o da desunião trágica, que quase levou à eclosão de uma guerra civil, a pior guerra do mundo em que o irmão mata o irmão.
Literariamente, ora com partes alucinadas (como foi a revolução real), ora com partes serenas descritivas, Revolução prima por duas caraterísticas ímpares nos romances do ano de 2023: o ritmo da narrativa e a ductilidade da frase.
O ritmo: ora desvairado com a força vibrante de uma escrita semelhante à do sonho utópico, como um profeta hebraico, com a certeza da verdade na mão (Maria Luísa), ora com a serenidade da esperança (Maria Antónia), ora retratando o espanto da surpresa e da descoberta (Frederico e Pureza), ora, ainda, aristocraticamente apreciando o espetáculo do mundo sem com ele se comprometer (Gonçalo). Palavra após palavra, Revolução evidencia uma unidade coerente, trespassada por uma pulsão dionisíaca, mantendo um contínuo de picos dramáticos conjugados com nós de suspense que perfazem o conteúdo da estrutura do romance, conteúdo que somos tentados a designar por “carne” do romance, tal as diferentes emoções que nos faz mentalmente viver
A ductilidade: uma maravilha a ductilidade sintática que, prática de um bom escritor e jornalista, flexibiliza a língua a níveis originais, misturando o formalismo da gramática com o jargão popular e a linguagem comum, num caleidoscópio de construções combinatórias que caraterizam as diferentes personagens. E a ductilidade semântica que, entre novas denotações da realidade, conduz à criação de metáforas originais, com uma diversidade tal que algumas são um pouco feias, mas novas (por exemplo, ser “o céu uma vidraça acabada de lavar”, p. 64.
Chamamos a atenção para o facto de a criação de metáforas literárias, isto é, de criação de novos sentidos para o real, constituir a mais alta função de um escritor, e HG consegue-o em pleno.
Um pormenor de fina ironia que atravessa todo o livro: os slogans anarquistas de Lisboa, que relembrados 50 anos depois não deixam de encantar pela sua beleza e por denotarem com justeza o espírito de 1974 – 75: “Abaixo os telhados, a chuva é do povo”, “Mortos da vala comum, ocupai os jazigos de família”, “Pato Donald ao poder!”, “Fora com os mortos, a terra a quem a trabalha”.
É um prazer ler romances assim. J
PS – Um esclarecimento ao texto da última edição do ano passado. Quando elegemos Revolução, de Hugo Gonçalves, como o melhor romance de 2023, não tivemos em conta o romance histórico. Neste subgénero, houve igualmente um grande e belíssimo romance, A Capitoa, de João Paulo Oliveira e Costa, do qual aqui fizemos a recensão no devido tempo.