O mais importante galardão literário de língua portuguesa, que se destina a “consagrar anualmente um autor que tenha contribuído para o enriquecimento do património literário e cultural da língua comum”, encontrou na presente edição uma justa adequação. Na ata elaborada pelo júri sobre a escolha do premiado pode ler-se: “A atribuição do Prémio Camões a Vítor Aguiar e Silva reconhece a importância transversal da sua obra ensaística e o seu papel ativo relativamente às questões da política da língua portuguesa e ao cânone das literaturas de língua portuguesa.”
O primeiro livro de Vítor Aguiar e Silva (VAS), Para uma interpretação do classicismo, publicado em 1962, sob o signo do poeta e ensaísta Paul Valéry, resultante da dissertação de licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, configura uma proposição preliminar, o embrião de um caminho admirável com marcos sucessivos de extrema relevância, dentro de um contexto universitário. Seguir-se-á a publicação, em 1967, aos 28 anos, da 1ª edição dessa obra monumental, a Teoria da literatura, cuja importância foi justamente assinalada pelo júri do prémio: “No âmbito da teoria literária, a sua obra reconfigurou a fisionomia dos estudos literários em todos os países de língua portuguesa. Objeto de sucessivas reformulações, a Teoria da literatura constitui-se como exemplo emblemático de um pensamento sistematizador que continuamente se revisita.”
Para além do universo de língua portuguesa, esta obra teve também larga projeção internacional, concretamente em universidades de Espanha, da América hispânica e dos Estados Unidos da América. Hoje é difícil avaliar a magnitude dessa empresa, na década de 1960 do século passado, num país periférico e num tempo em que o acesso à informação não estava ao alcance de um clique como hoje.
Desde o primeiro momento, a amplitude de visão (na relação entre o sujeito e os objetos eletivos) evidencia os traços indagativos e desbravadores que se refletirão na escolha do tema do seu doutoramento, de que resultará uma obra absolutamente inovadora, no quadro na nossa história literária, o livro publicado em 1971 com o título Maneirismo e barroco na poesia lírica portuguesa.
Vítor Aguiar e Silva escreveu num dos seus textos: “Tenho percorrido múltiplos caminhos que têm como estrelas polares Camões, a modernidade literária e esse mar sem fim que é a teoria literária”. Colheita de inverno, o último volume por si publicado, em 2020, o ano da atribuição do Prémio Camões, é um livro testamentário, onde esplendem todas as grandes linhas da sua obra, revelando uma continuidade, um prolongamento da sua Teoria da literatura, apresentando uma concreta abertura, neste campo. Como o autor afirma, mostra-se no livro um “conjunto de novos horizontes teóricos, de novos horizontes do conhecimento no domínio das ciências humanas que foi construído a partir da e sobre a desagregação do paradigma formalista-estruturalista”. Sob este ponto de vista é emblemático, desde logo, pelo título, o ensaio intitulado “A pós-teoria: Eclipse ou metamorfose da teoria”.
Num justo depoimento, Maria Helena da Rocha Pereira referiu-se a VAS, seu antigo aluno, como o “mestre completo.” É difícil resumir a completude desse mundo que é a obra excepcional do prof., teórico da literatura, estudioso dos séculos XVI e XVII, autor de inigualáveis ensaios sobre Camões e de notáveis estudos sobre a Modernidade, sobre o ensino da literatura ou ainda sobre questões da política da língua portuguesa. A mais fulgurante inteligência, o inexcedível rigor e a elegância da escrita, perpassam em todas as suas páginas e espelham o seu mais fundo amor à literatura. O que encontramos na obra sempre encontrámos na vida. Quem conviveu de perto com o prof. VAS pôde constatar que o erudito, o scholar brilhante e permanentemente atualizado, foi uma das pessoas mais atentas ao outro. Por trás da aparente distância estava o ser profundamente afável e reto.
A sua inteligência crítica e hermenêutica, o fino espírito analítico, marcam todo o seu ensaísmo, que articula magistralmente a argúcia e a erudição, numa escrita medida, de mão precisa – uma prosa clássica nitidamente desenhada. É a partir da clareza, como a de um rigoroso gravador, que nos seus textos se inscrevem as palavras, em suas mil e uma conexões de luz e sombra. Um traço idiolectal marca os inícios e os fechos de grande parte dos seus ensaios: a etimologia e as reticências, o fascínio pela origem e a suspensão. A história dos nomes tem um vasto alcance. O caminho que desvenda a origem da palavra dentro da História é o caminho da abertura do pensamento. Entre os antigos e os contemporâneos, VAS é a voz dialogante que desvela teorias e conceitos, rejeitando definições redutoras e simplistas, ultrapassando os limites, as constrições da medida estreita.
Desde o princípio, toda a obra de VAS projeta uma largueza de horizontes, enraizada na profunda paixão pelo conhecimento. Por isso ele é um intérprete do tempo que agudamente reflete a exasperada consciência tempo histórico – entre a tradição e o presente, entre o presente e o futuro. E lemos nessa inquieta busca de compreensão de mundos, a despeito de todas as crises e convulsões, a crença absoluta nas humanidades e no papel da literatura, a crença na palavra do poeta. Descobrir o homem pela literatura, na sua plenitude, mas também nos pequenos desenganos, no desastre ou na sombra matutina, é a lição maior do poema.
Recorto de um dos seus textos uma asserção lapidar sobre essa crença na força que a palavra poética tem para atualizar todas as possibilidades da linguagem: “A poesia (a literatura) é a única arte que cria as suas formas, a sua semântica, os seus mundos imaginários, com a matéria e as formas da linguagem verbal, instituindo com esta uma relação verdadeiramente placentária, no sentido literal e metafórico desta expressão. O poeta é, em todos os tempos, o mais criativo, o mais acurado, o mais amante e o mais sábio artífice – o miglior fabbro del parlar materno, para reutilizar com extensão universal o célebre verso de Dante (Purgatório, XXVI,117) – de cada língua histórica.”
Os ensaios de VAS, ao contrário de meras operativas e modelares desmontagens, são a pura irradiação que nos leva a contemplar o poema como pulsação viva, como organismo vivo, na proximidade da chama. Camões, um “clássico que tem sido moderno ao longo dos séculos” (para me servir ainda das suas palavras), é o poeta que leva à transmutação do silêncio em ouro, iluminando, por metonímia, a espessura dos dias de quem dele se ocupou, por várias décadas, em ensaios magistrais, numa “fascinada admiração”, numa “fidelidade amorosa.”
Para o ensaísta, Camões foi o grande propiciador da alegria. Uma alegria repassada de melancolia, mas alegria. Como lema que encontrássemos no átrio da casa, lema recolhido nos versos dos belos poemas camonianos – “alegria/ em tudo perfeita e cheia,/ de tão suave harmonia/ que nem, por pouca, recreia,/ nem, por sobeja, enfastia.”
É esse o mesmo júbilo hoje partilhado por nós, seus leitores, celebrando no prémio a pervivência de uma obra magistral. Por isso hoje lembramos aqui Vítor Aguiar e Silva e em torno do seu saber nos reunimos.