1. A nenhum escritor se aplicou tanto e tão bem a ideia de regresso como a Teixeira de Pascoaes (TP). Acredito mesmo que toda a sua obra e todo o seu pensamento, no que este tem de ardor imaginativo e de rejeição de qualquer fria abstração conceptual, se podem sopesar pela ideia de eterno retorno, pelo desejo obsessivo de voltar ao ponto de partida.
Tudo na sua longa vida e na sua vasta obra parece obedecer a esse impulso genesíaco de volver a uma origem perdida que tanto pode ser a infância original de todos os encantamentos primeiros, o reino de todos os poderes primordiais onde por uma vez se é príncipe do mundo, como o paraíso intemporal de todas as glórias esquecidas, o jardim das delícias da História que está afinal sempre aquém ou além dela.
Que foi afinal a saudade em Pascoaes, essa obstinação que sempre acompanhou as suas palavras, a ponto de com ela criar o primeiro “ismo” poético do século XX português, senão a necessidade de viver em permanência esse estado de maravilhamento onde todos os poderes iniciais e unos são restituídos a um humano dividido e decaído? O que outros tomaram por ponto mágico que só por exceção se alcança foi nele condição mesma de vida.
Nesse sentido a sua saudade, a sua teima em viver uma origem não separada da plenitude, não degradada por sucessivos afastamentos, nada teve de regressiva e de passadista. Havia no mais fundo do seu regresso um paradoxal impulso para a frente, um desejo de futuro, um incitamento de progresso que o seu grande poema cíclico Regresso ao Paraíso (1912) tão bem categoriza.
O poeta desejava o tempo que havia de vir, tinha tão ardente saudade do futuro que este só se podia confundir com o passado mais arcaico que se esvai na noite imemorial e sem tempo. O milagre deste poeta não foi o passado nem o futuro – foi não ter princípio nem fim.
2. O ‘regresso’ que no título desta nota se propõe pretende porém assinalar o retorno dos livros do escritor no presente ano de 2023 – isto depois da sua edição ter parado em 2010, ano em que a Assírio & Alvim editou o vigésimo quarto volume das “obras de TP”, coleção iniciada em 1984.
José Rui Teixeira vem agora propor uma nova edição da sua poesia em vários volumes, prometendo até uma novidade de peso – a edição completa de Versos Brancos. Acabou de surgir o primeiro volume da série, Poesia I, agrupando as duas primeiras grandes coletâneas do poeta, Sempre (1898) e Terra Proibida (1899), e a restante criação da época – os poemetos Belo (1896; 97), À Minha Alma (1898), À Ventura (1901); a juvenília, Embriões (1895); dois folhetos ainda que assinou com outros poetas.
É indesmentível o desnivelamento entre estas várias obras. Embriões foi editado aos 17 anos e logo repulsado pelo autor, que nunca o citou e destruiu os exemplares sobrantes. O mesmo para os dois folhetos. Embora lembrados, os três poemetos nunca conheceram reedição em vida. Ao invés, as duas coletâneas tiveram sucessivas reedições e foram mostrando novas versões, dando-se o caso de a última edição dos livros em vida do poeta, no primeiro volume dos sete das “obras completas” (1929-32), nada ter a ver com os livros editados em 1898 e 1899.
Pascoaes era um poeta torrencial e inspirado, eletrizado por uma febre verbal inestancável, estenografando possessa e cegamente tudo o que a musa ditava, mas na ressaca das excitações criadoras, quando a temperatura esfriava, punha-se à mesa de trabalho e castigava a expressão do poema ao longo de sucessivas e por vezes irreconhecíveis versões.
Este volume da responsabilidade de José Rui Teixeira tem assim como ponto de partida – arquitexto genético se se quiser – a edição do primeiro volume das “obras completas” de 1929. A versão dos dois livros de 1898 e 1899 segue em exclusivo a lição dessa edição, que se tomou por suficiente por ser a última da mão do poeta.
Entre a edição de 1929 e a de José Rui Teixeira, interpõe-se porém uma outra indispensável, feita já depois da morte do poeta. Refiro-me ao primeiro volume das “obras completas de TP” (1965-1975) da responsabilidade de Jacinto do Prado Coelho, de que saíram 11 volumes e que é até hoje o empreendimento editorial em volta do escritor de maior vulto e solidez.
Foi esse estudioso o primeiro a integrar os três poemetos já referidos junto dos dois grandes livros da época. O mesmo para os folhetos coletivos. A edição de José Rui traz agora a novidade de juntar Embriões, que só conheceu uma reedição fac-similada para bibliófilos em 2015.
Num poeta desta estatura parece-me inquestionável o interesse da sua juvenília – embora apenas no plano documental para se perceber como a sua poesia evoluiu e para se entenderem as razões da sua permanência.
3. Pascoaes constitui uma das experiências poéticas cruciais da poesia portuguesa. É nele que a poesia do seu século português se bifurca para se separar de vez, posto que de forma solitária, do que ainda havia de realismo sensível nas vanguardas. Ao autor de Sempre só interessava a imaginação, não a realidade, mesmo quando essa realidade era forma artística como foi o caso do modernismo ou modo metafísico como sucedia com a filosofia e a religião.
Nesse sentido, se Fernando Pessoa foi um poeta com uma tradição identificável, que começa em Cesário Verde e se prolonga em Eugénio de Castro e Camilo Pessanha, ele foi, no que melhor o individualiza, um poeta sem família. A sua aventura foi uma experiência única na poesia portuguesa da época.
O dissídio entre Pascoaes e Pessoa, a bifurcação clara de dois caminhos distintos que se cruzam num único ponto para logo se separarem, é o facto mais significativo da poesia portuguesa do século XX. Os termos desse desacordo são os do modernismo como fator de rigor mental e os de um contra classicismo que explue nas diversões infrenes da imaginação.
Conceda-se todavia que por força da extensão da sua obra, o poeta trabalhou em vários planos e com várias linguagens, o que permitiu que tanta e tão variada gente ao longo do século XX, de Eugénio de Andrade a Sena, de Sophia a O’Neill, de Ilídio Sardoeira a Manuel Simões S. J., de Jacinto Prado Coelho a Silvina Rodrigues Lopes, o antologiassem, o comentassem e o fizessem seu.
Mas o núcleo elusivo da sua experiência, aquele que melhor distingue a sua obra de todas as circundantes, dando causa aos predicados de maior adereço do poeta, só o veio do surrealismo português o soube isolar e pôr em destaque.
Foi Mário Cesariny que consciencializou a bifurcação que as obras de Pessoa e de Pascoaes apresentavam – a via rápida, motorizada, do primeiro e o trilho pedestre e selvagem do segundo. Com ele o que era experiência até aí intransitiva fez-se reserva de possíveis alterações de paradigma, cujos resultados são para já impossíveis de alvitrar, porquanto parecem depender menos de escolhas estéticas do que de circunstâncias societais.