Apesar do suposto “prestígio” que o exercício implica, as adaptações de clássicos da literatura para banda desenhada tendem a não ser muito conseguidas, por várias ordens de razões. Porque não se encontrou o registo certo para uma versão numa linguagem totalmente distinta, porque há demasiada (ou demasiado pouca) reverência pelo original, porque o espaço disponível é curto, porque falta talento. Mas claro que há exceções.
Entre nós uma das adaptações mais faladas nos últimos tempos foi “Lendas japonesas” onde se reúnem histórias de Wenceslau de Moraes (1854-1929) vertidas em BD por José Ruy (1930-1922) ao longo de várias décadas. E que se podem agora apreciar num só volume, em excelente edição da Polvo, cerca de um ano após a morte do autor. Parte do mito em torno desta obra advém, precisamente, não só do carinho de Ruy pelo projeto, mas do tempo que se levou a chegar aqui, desde as primeiras versões (1949-51) até hoje, com muitos avanços e recuos, incluindo o redesenhar de algumas histórias. Mas os mitos só valem a pena se tiverem qualidade, e “Lendas japonesas” é um belo livro que vale a pena desfrutar sem se pensar na sua génese. Essencialmente por dois motivos: texto e desenho atingem aqui uma notável simbiose, e a natureza contemplativa e simbólica das histórias é ideal para tirar partido do bom sentido de composição de José Ruy, e mesmo do seu uso peculiar da cor, sem que as limitações do seu traço em termos de anatomia e movimento sejam evidentes. Tudo isto seria pouco relevante se as lendas não fossem interessantes, e fizessem pensar, desde as mitológicas envolvendo deuses nipónicos, às deliciosamente morais (como a das duas rãs), passando pelas mais macabras. Realce ainda para o facto de Ruy abordar aspetos menos simpáticos da natureza de Moraes na breve biografia que encerra o livro, apesar da clara admiração que nutre pelo autor. Foi pena não ter chegado a ver a versão final de “Lendas japonesas”, mas valeu a pena a jornada.
Um outro nome a seguir neste tipo de registo é o do espanhol José Luis Munuera (n.1972), cujo traço, sentido de composição, fluidez narrativa e uso de cor são excecionais. Se o truque de trocar o género de Scrooge em “Um conto de Natal” (adaptando Charles Dickens) é interessante pelas inevitáveis reflexões que desencadeia (mas um truque fácil, ainda assim), muito conseguida é a adaptação de “Bartleby” de Herman Melville (ambas belas edições da Arte de Autor). A fábula sobre alguém no coração burocrático do mundo financeiro, que poderia perfeitamente desempenhar o seu papel de forma competente, mas que “prefere não o fazer” é fantástica no alcance do seu absurdo, e nas inúmeras leituras possíveis. É esse total isolamento do protagonista, bem como a incompreensão dos que o rodeiam, e que querem à viva força imbuir as suas ações que significado, que Munuera capta de maneira brilhante, criando uma obra complexa que é complementar ao original, não o atropelando nem resumindo. Estas são BDs que dão esperança a todo um género, cujo objetivo se entende, mas que tem sido muito sobrevalorizado.