Conhecem-se hoje cerca de quatro dezenas de exemplares de Os Lusíadas com a data de 1572, espalhados por diversas bibliotecas de Portugal e do mundo. É o mesmo o registo de data, 1572, de local de edição, Lisboa, e de impressor, António Gonçalves. Contudo, as diferenças que os vários especímenes entre si apresentam são inúmeras e desconcertantes. Nem o texto nem a iconografia se correspondem, em reiteradas variações de livro para livro.
Existiu uma edição com o pelicano para a direita e outra com o pelicano para a esquerda? Ou a xilogravura do frontispício partiu-se e foi feita outra para a mesma edição? E qual foi a gravura que se partiu, a que tem o pelicano para a esquerda ou a que tem o pelicano para a direita? Então porque é que ambas continuaram a ser usadas depois de 1572? E porque é que no verso 1.1.7 tanto se lê “E entre gente remota edificarão”, como “Entre gente remota edificáram”, independentemente do espécimen apresentar o pelicano voltado para a esquerda ou para a direita? Que valor de identificação e diferenciação têm as duas siglas Ee/S (exemplares com o verso 1.1.7 E entre/pelicano para a esquerda – Sinistra) e E/D (exemplares com o verso 1.1.7 Entre/pelicano para a direita – Destra)?
Estas e tantas outras espinhosas questões aguardam respostas definitivas há séculos. Como tal, a identificação da princeps de Os Lusíadas e, por consequência, da configuração originária do texto-símbolo da condição portuguesa, como o diria Eduardo Lourenço, está por acertar.
O primeiro estudioso a assinalar as dissemelhanças entre edições foi o incansável Manuel de Faria e Sousa. Contudo, só em inícios do século XIX o assunto voltou à ordem do dia, com a edição do Morgado de Mateus, de 1817, para de então até hoje continuar a ser intensa e acesamente discutido. As opiniões dividem-se: que houve duas edições com a mesma data, que foram no mínimo três ou quatro e que foi afinal uma só.
Mais recentemente, tem vindo a receber grande aceitação o ponto de vista de Kenneth David Jackson, o lusitanista da Universidade de Yale a quem a disseminação da cultura portuguesa tanto deve. Jackson relançou a ideia da existência de uma única edição de 1572, tendo publicado, em 2003, um CD no qual reproduziu por imagem 29 exemplares de Os Lusíadas de 1572. Assim disponibilizou aos estudiosos de Camões um conjunto de especímenes não facilmente acessível. Além disso, teve em linha de conta ainda mais quatro exemplares e uma edição facsimilada. Em sua opinião, as diferenças devem-se à introdução de alterações nas provas tipográficas.
Para a investigação do problema crítico relativo à princeps de Os Lusíadas, têm vindo a ser utilizadas metodologias bastante diversas. Contudo, a observação dos exemplares de 1572 que se conhecem mereceu menos atenção do que seria de esperar. Ora, é da sua análise material que podem provir as ilações seguras e rigorosas para a definitiva resolução deste problema, em virtude da objetividade que as sustenta, colocando-as fora de dúvida. Num campo tão fustigado pelos efeitos daquilo que Jorge de Sena designava como o método olfativo (isto cheira-me a Camões, isto não me cheira — caricaturava Sena), a observação detalhada, de visu, do maior número possível de exemplares de 1572 e da sua configuração material é o caminho que conduz a conclusões inquestionáveis.
A metodologia da bibliografia descritiva e analítica tem vindo a ser aplicada, com resultados irrefragáveis, a várias obras que colocavam, também elas, problemas extremamente complexos (Ariosto, Shakespeare, etc.). Mas cada caso é um caso.
Com este artigo, divulgo aqui no JL, em primeira mão, uma síntese dos resultados da pesquisa que dediquei ao problema da edição princeps de Os Lusíadas, servindo-me dos meios da bibliografia descritiva e analítica. São a base da edição do poema que preparei para o editor Bompiani (acompanhada de tradução), e também da que preparei para o Centre d’Études Portugaises de Genebra, que já publicou quatro volumes da edição crítica da obra de Camões (ciep-ge.com/editions-critiques).
Recorde-se muito resumidamente que, na época da imprensa manual, para cada conjunto de páginas eram montadas fôrmas (geralmente duas) com uma estrutura interior própria, ou seja, o esqueleto — que armava o desenho gráfico, a disposição da mancha tipográfica e os espaços em branco. O texto era composto através da inserção de tipos móveis, um a um, e eventualmente de motivos iconográficos. Para introduzir emendas substituíam-se os tipos errados, mal metidos ou em falta, sem que de modo algum fosse possível alterar a fôrma e o seu esqueleto, por motivos físicos ligados à produção. A fôrma e o seu esqueleto constituíam uma estrutura material que não podia ser modificada.
Jackson entende que as diferenças entre exemplares se devem à sucessiva introdução de emendas na mesma fôrma, aproveitando porém os fólios que já tinham sido impressos. Se as fôrmas eram as mesmas, a edição foi uma só. Em seu entender, os primeiros exemplares tinham o pelicano para a direita e no sétimo verso da primeira estância lia-se “Entre gente remota edificáram”. Através da introdução de muitas e muitas emendas nas mesmas fôrmas, ter-se-ia então chegado aos exemplares com o pelicano para a esquerda e com o verso 1.1.7 “E entre gente remota edificarão”.
A mediar uma e outra fase, estender-se-ia uma imensidão de correções in progress, documentadas por aqueles exemplares em que se misturam características de facto muito curiosas. Por isso as siglas Ee/S e E/D não têm, para Jackson, qualquer razão de ser. É sua ideia que a edição foi uma e apenas uma, porque as fôrmas foram sempre as mesmas.
O grande sustentáculo desta tese reside no que Jackson designa como “os quatro erros universais”, ou seja, as quatro páginas de Os Lusíadas onde existem erros comuns a todos os exemplares que se conhecem e, projetualmente, também comuns a todos os que se venham ainda a descobrir. Vejamos pois quais são esses erros.
f. 97r CANTO QVINTO em vez de CANTO SEXTO (cabeçalho)
f. 103r CANTO QVINTO em vez de CANTO SEXTO (cabeçalho)
f. 110r 106 em vez de 110 (foliação)
f. 120r 102 em vez de 120 (foliação)
Para o lusitanista de Yale, estas são “as peças que faltavam do quebra-cabeça” que há séculos espera uma solução: se os erros são comuns a todos os exemplares, é porque as fôrmas tipográficas foram as mesmas, e portanto houve uma só edição.
Na base de tal conclusão encontram-se porém observações que incidem sobre um erro textual ou numérico comum. Não se tem em conta o quid da argumentação, ou seja, não se comprova que as fôrmas de que saíram todos os exemplares foram as mesmas. Se as fôrmas tivessem sido as mesmas, o desenho de página e outros aspetos da sua configuração material teriam de ser, necessariamente, os mesmos.
Para a resolução desta questão, os meios digitais fornecem uma ajuda decisiva. Sobrepus o mesmo f. 97r do exemplar Cam-3P da Biblioteca Nacional, com o pelicano para a esquerda, e do exemplar 378C da Biblioteca D. Manuel II da Casa de Bragança, com o pelicano para a direita. Trata-se da primeira página da lista de erros comuns a todos os exemplares, CANTO QVINTO em vez de CANTO SEXTO. A sobreposição toma por referência o início do primeiro verso:
Como se vê, apesar do erro comum, o desenho de página e o texto das estâncias são completamente diferentes. Repeti o procedimento para as outras três páginas (ff. 103r, 110r, 120r): as conclusões diferenciais foram reiteradas. Repeti-o ainda para páginas que apresentam erros comuns verdadeiramente bizarros, como qne (f. 177r, 10.98.3) ou profnndo (f. 185r, 10.147.8), e para outras. O diferencial físico confirma-se.
Estas conclusões são reiteradas por uma outra característica da produção. Num dos dois conjuntos de fôrmas (pelicano para a esquerda), há três ligaduras que nunca foram usadas: as, sp, us. São porém usadas ao longo de todo o texto produzido pelo outro conjunto de fôrmas (pelicano para a direita):
Estas ligaduras são peças que unem fisicamente dois caracteres tipográficos. Facilitavam imenso o trabalho do tipógrafo que fazia a composição do texto. O compositor tirava os tipos da caixa onde se encontravam ordenados, um a um, para ir montando as linhas. Em vez de tirar dois tipos da caixa, por duas vezes, descrevia um só movimento. Além disso, as ligaduras davam maior robustez à fôrma. Se o compositor de uma das edições nunca recorreu a essas ligaduras, é porque não as tinha na sua caixa de tipos. Mas se o outro compositor a elas recorreu, é porque lá se encontravam, obviamente. Por conseguinte, os compositores trabalharam com caixas de tipos pelo menos parcialmente diferentes.
Por consequência:
1. Comprova-se a existência de duas matrizes disjuntivas, com desenho de página, composição tipográfica, configuração textual e iconografia irredutíveis, e portanto produzidas a partir de dois conjuntos de fôrmas distintos. Consequentemente, não restam dúvidas de que existem duas edições independentes de Os Lusíadas com data de 1572.
Exemplares, cadernos e fólios foram batidos ou a partir de um conjunto de fôrmas, ou a partir do outro, em regime de exclusão. São muito raros os exemplares que incorporam fólios com outra origem, como o da Universidade do Texas (ff. 41-42, 47-48) ou o da BNP Cam1P (frontispício com gravura metálica). Outro caso ainda é o da inserção de reproduções para suprir faltas. É o que acontece com o primeiro caderno do exemplar do Wadham College, de Oxford.
2. Implicitamente, fazendo-se a produção de uma edição em série, as características de cada edição são coerentes entre si e sistémicas. Nesse quadro, o valor identitário das siglas Ee/S e E/D prevalece. Na edição em que se lê “E entre gente remota edificarão” o pelicano está voltado para a esquerda. Na edição em que se lê “Entre gente remota edificáram” o pelicano está voltado para a direita.
3. Não existem estádios tipográficos de transição que possam documentar uma edição em continuidade com introdução de emendas.
4. Os exemplares mistos são interpolados. Passando ao plano dos especímenes individualizados, um considerável número deles pertence, na sua totalidade, ou a uma ou a outra das duas edições. Há no entanto outros em que se misturam fólios de Ee/S e de E/D. São particularíssimos, pelo que bem se compreende o fascínio que têm vindo a exercer sobre os estudiosos. Não podem ser considerados, porém, como resultado de estádios intermédios de uma correção de provas in progress. Os conjuntos de fôrmas são apenas dois. O que se passa é que fólios de uma e de outra das edições foram interpolados.
Esses exemplares mistos não saíram assim da produção, pois contêm fólios ou cadernos que provêm de fôrmas diferentes. Resultam de uma interpolação de fólios ou cadernos que pertenciam a uma outra edição, para preencher espaços em falta. O todo foi depois encadernado, daí resultando um espécimen compósito. Assim se explica a diversidade da fisionomia dos exemplares mistos.
5. Finalmente: qual das duas edições, Ee/S ou E/D, foi a princeps? A edição Ee/S é a princeps. A análise da materialidade do texto fornece a resposta decisória. O elemento que documenta, de forma límpida, a precedência de Ee/S são as matrizes das capitulares de madeira.
Essas peças eram abertas a canivete com grande facilidade, na própria oficina tipográfica. Cada uma delas é um unicum, pelo que possuem um alto valor de identificação bibliográfica. Em Os Lusíadas são usadas 11 capitulares, uma no início do alvará e dez em início de canto. Só a do alvará difere entre uma e outra edição. As restantes foram batidas com as mesmas xilogravuras. Apesar de a capitular I, usada no início do segundo e do sétimo canto, parecer diferente, não o é: em E/D a peça foi inserida de cabeça para baixo. As capitulares xilográficas são extremamente sensíveis ao desgaste, pois a madeira é um material frágil, e encontram-se sujeitas à força da prensa. Na edição E/D acusam um grau superior de deterioração.
Por conseguinte, a edição princeps de Os Lusíadas é Ee/S. E/D é uma edição imitativa, ou seja, uma contrafação. J