“A Fundação não é José Saramago mas é quem o continua. É uma responsabilidade que se assume todos os dias, quando se tomam decisões que têm a ver com a literatura mas também com a ação cívica e a responsabilidade social que sentimos dever assumir”, diz-nos Pilar del Río, a presidenta da Fundação e viúva do escritor. A fundação tem desenvolvido uma assinalável ação, e Pilar, jornalista e combativa mulher de cultura e de causas, hoje já com nacionalidade portuguesa, sublinha que os dez anos da morte de Saramago têm uma “celebração simbólica, como mandam os tempos de contenção devido ao surto de Covid-19, mas ancorada numa atividade intensa da fundação nos vários domínios em que Saramago se distinguiu: a literatura, obviamente, mas também a luta pela ética e pela defesa do ambiente”.
Jornal de Letras: Amanhã, 18, assinalam-se dez anos sem José Saramago…
Pilar del Río: …Não, dez anos com José Saramago de outra maneira…
Dez anos duros?
O “mandato Saramago”, como o definiu um dia Boaventura de Sousa Santos, nunca poderia ser um passeio displicente: o seu nível de exigência o era muito grande, tanto no âmbito profissional como no cívico. Essa era a sua marca e a ela estão obrigados todos os que decidem colaborar no projeto.
Como definiria esse projeto?
Não é fácil, talvez possamos dizer atividade em curso. A Fundação José Saramago não é José Saramago, obviamente, mas é quem o continua. É uma responsabilidade que se assume todos os dias, quando se tomam decisões que têm a ver com a literatura, claro, mas também com a ação cívica e a responsabilidade social que sentimos dever assumir. Na Fundação tentamos não ser indiferentes ainda que estejamos muito conscientes do nosso papel. Assumimos a cidadania de José Saramago porque o contrário seria não responder aos valores da carta fundadora.
Valores esses que são Cultura, Direitos Humanos e Meio Ambiente?
Sim, José Saramago não se dedicava ao supérfluo, foi aos assuntos que lhe pareciam indispensáveis: a cultura como elemento de enriquecimento das pessoas, os Direitos Humanos como exigência inalienável de todos e de cada um, o meio ambiente porque sem ele o planeta, que estamos a destruir, não tem sentido.
A Fundação tem estado a trabalhar numa Declaração dos Deveres Humanos. De que se trata?
Foi a missão que José Saramago lançou quando, no discurso do Nobel, 50 anos depois da assinatura da Declaração Universal dos Direitos do Homem, disse: “Nós, cidadãos, façamos o que os governos do mundo não souberam ou quiseram fazer, que os direitos humanos, todos os direitos, sejam respeitados e cumpridos. Aqui e ali, em todo o mundo.” É a ética da responsabilidade sobre a qual tanto escreveu e falou José Saramago nos seus livros, desde Levantado do Chão a Caim, passando por Memorial do Convento, Evangelho segundo Jesus Cristo ou Ensaio sobre a cegueira, por dar alguns exemplos.
Em que ponto está essa Declaração de Deveres?
A redação teve ligar no México, por iniciativa da Universidade Nacional do México, com a participação de juristas, ativistas e personalidades ligadas à cultura de vários países. Foi entregue nas Nações Unidas e pode ser subscrita individualmente: na página da Fundação há um link para o efeito. Estamos na fase de difusão do articulados (23 artigos), em universidades, congressos, centros culturais e cívicos, na sociedade civil. É mais um instrumento que os cidadãos têm para dizer que existimos e somos importantes, que não somos estatística, temos peso e conhecimento.
Quais são esses deveres?
O de combater a discriminação por motivo de raça, cor, género, identidade sexual, idioma, religião, opinião política… O de não incitar ao ódio ou à discriminação. O de velar pela veracidade da informação que recebemos e emitimos. O de participar nos assuntos públicos. O de instrução e de exigir educação livre, gratuita e sem discriminação. O de cuidado. O de respeito pelo meio ambiente e proteção da biodiversidade. O de contribuir para a resolução pacifica dos conflitos. Assuntos, como vê, que dizem respeito a todos e a cada um.
Essa é a grande bandeira da Fundação?
É uma delas. Estamos a preparar o Centenário de José Saramago, que se assinala em 2022, e cuidar da sua obra em qualquer formato em que possa apresentar-se. Sozinha ou em diálogo com outros autores de língua portuguesa. Tentamos que esteja inserido na literatura em língua portuguesa e que seja, como ele disse, “mais um que a eles se veio a juntar”.
E terminando com o que queríamos começar: como vão assinalar o 10º aniversário da sua morte?
Ao meio dia, na biblioteca de José Saramago, em Lanzarote, que desde que começou a pandemia está fechada a visitas públicas, como a ilha inteira, haverá um momento musical:. música ao vivo para Saramago, que cada um entenda isso como quiser. E haverá, como todos os dias, flores frescas sobre a sua mesa. À tarde, no auditório da Fundação, em Lisboa, com transmissão em streaming no Maple Live, três grandes atores lerão o seu último romance [inacabado], Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas. Outra chamada de atenção para a ética da responsabilidade: há guerras porque há armas. Há armas porque honestos trabalhadores as fabricam, sem denunciar que esses instrumentos matam. A indiferença não é possível, nem dizer que são defensivas: há armas que não são defensivas, são instrumentos de morte e ponto final.
Não haverá público na Fundação?
Por razões de saúde o público não poderá entrar, apenas colaboradores diretos, mas a leitura faz-se para que possa ser vista em qualquer lugar do mundo. E para que se oiça o bonito português de José Saramago dito por Tiago Rodrigues, Joana Manuel e André Levi, nada mais e nada menos.
Será um dia triste?
Será um dia cheio.