Gare Marítima
O correspondente do jornal no arquipélago leva‑a de carro até ao forte de São Brás, de onde ela seguirá ao encontro do terrorista. Deixa-a ao virar da esquina, a pouca distância da entrada para o cais da cidade. Não falam, nada mais têm a dizer um ao outro. Mas a jornalista sabe que os olhos do Gil lhe mentem: nem por um momento acreditam que ela, a enviada especial do Quotidiano, se sinta tão calma quanto aparenta à partida para a missão que a trouxe de Lisboa até à ilha. Entrevistar um tal Mariano Franco, outrora o operacional mais temido da Frente de Libertação dos Açores. Recuperar a história, ainda hoje obscura, desse homem de armas e ideias, um militante de proa da causa independentista, mais tarde contestatário da organização e, por fim, seu dissidente. Um anarquista à solta e em rebelião contra os órgãos de cúpula da FLA.
Mais de vinte anos volvidos sobre as derivas e os boatos insones da política, com o separatismo morto ou mal sepultado, logo havia de ocorrer ao casmurro David Matos, chefe de redacção em Lisboa, dedicar-lhe um suplemento dominical do jornal! Que não existia outro igual a ele, o único capaz de aclarar esse passado de equívocos, sombras e meias-palavras. Apesar de ter abandonado a política e a cidade para ir viver no campo, continuava a ser o elemento histórico da FLA a quem atribuíam tudo e mais alguma coisa: posse e uso de materiais explosivos, armas de guerra, tiros de pistola e rajadas de metralhadora contra pessoas e alvos oficiais, actos de violência sobre gente perseguida durante o inferno perfeito da Revolução dos Cravos nos Açores – até à madrugada em que foi preso, levado para a Terceira e daí para Lisboa.
Matos insistira com ela para que o questionasse acerca de tudo, a começar pelas coisas mais elementares: os comunicados anónimos em nome da FLA, porém atribuídos a Mariano, e os manifestos e artigos de opinião vindos a público nos jornais das ilhas, já com a assinatura dele. Desafiá-lo a confirmar a prática de sevícias sobre continentais e insulares que se opunham à independência – alguns embarcados à força para Lisboa em aviões civis e militares, quais degredados sem culpa nem crime, a caminho do exílio. Teve a honradez de não lhe omitir nenhum pormenor dessa missão na ilha, a começar pelo mais delicado: as condições impostas por Mariano para conceder a entrevista ao jornal. Primeira condição: que ambos se dessem a conhecer apenas no interior do porto, indo Cláudia Lourenço à frente e até a um sítio da doca que lhe seria indicado. Segunda condição: que aceitasse ser conduzida, sozinha com ele, a um local à escolha do homem, como garantia da clandestinidade do encontro.
Vendo-a ficar apreensiva com esta última exigência, Matos apressou-se a garantir que estivesse tranquila, tudo não passava de uma encenação, uma coisa mal-amanhada, obra de um amador. O jogo dele consistia em conferir solenidade a uma operação de rotina jornalística: um misto de enigma ingénuo e de prova do vazio – como nas matrioscas russas e nas caixinhas chinesas. Não se impressionasse ela com o secretismo nem com as manobras do Franco. Retirado na sua casa das Capelas, reassumira a condição de grande senhor, dono de terras, matas e manadas – a fazer lembrar o tempo em que uma gente do campo, rota e descalça, servira os pais dele de sol a sol, ao frio e à chuva, até emigrar e dizer adeus para sempre aos Açores.
– É o mormaço da tarde e o cais sem vivalma que me fazem sentir aziago – lamenta-se Gil, que ainda ali permanece, de braços cruzados e com vontade de chorar, ao vê-la afastar-se lá para dentro e sem olhar uma única vez para trás.
O mar cavado, as suas sete ondas a baterem contra o exterior da muralha e a virem quebrar-se no calhau rolado. Nuvens, poucas e altas, e paradas no firmamento quais penedos dele suspensos. Um ruído de mastros a bater nas alturas. A água a saltitar, a arremeter contra o casco das embarcações. Gil estranha não ver ninguém de serviço ao cais: nem guarda na guarita da entrada, nem vigias às mercadorias descarregadas no chão da doca, nem plantões de sentinela à Fortaleza ou a tripulação do cargueiro ancorado que espera a ordem de largada. Só a leveza porosa da tarde, com a sua luz crua, talvez pouco fiável no Outono das ilhas.
E lá estão as casas da cidade, as da primeira linha do mar e outras por detrás. Seguem o meio arco da Avenida Marginal contornando a baía, os comércios, as mansões de portas e janelas fechadas e as esplanadas desertas. Lá para diante, a costa marítima: a Calheta, o ilhéu de São Roque com o seu rosto de cão desdentado, a praia do Pópulo, a Atalhada e a Lagoa a esbater- se na neblina. Tudo isso Gil lhe fora mostrar na volta rápida à ilha. A paisagem que dali se avista sugere um biombo aberto sobre os campos de trevo, com as eternas vacas neles pousadas na erva, tal como pousam os melros negros e os pombos a debicar os bichos da terra. Sobem vales e bosques vivos que findam a meia-encosta. A partir daí, só as montanhas – encadeadas em espinha sobre o dorso pré-histórico da ilha. Nada mais existe digno de um olhar.
Minto: existe o vento. E ele não serve para nada, a não ser para levar consigo as nuvens e dispersá-las pelo espaço fora, já desfiguradas; e ei-lo que se derriça nos cabelos de Cláudia, que bate nas folhas e copas das árvores, que levanta no ar a espuma das ondas.
«Não deve haver lugar mais sombrio» – pensa para consigo a jornalista, à vista do cais.
Um corpo estranho à própria cidade branca com telhados vermelhos, às suas fachadas debruadas por frisos de basalto e às linhas harmónicas dos edifícios públicos. Lá mais ao fundo, são os braços nus dos guindastes sobre o quebra-mar, que ali trava a braveza das vagas. O porto é a melancolia e a desolação, e a fealdade da pedra cor de chuva, há tantos anos por caiar.
Apesar de não ver ninguém, persiste nela a sensação de estar a ser seguida e espiada. «O Diabo vem atrás de mim.» Um Diabo espião, com os seus passinhos de lã – correndo de meda em meda e de monte em monte de carga marítima. Amontoados de toros foram presos por cintas metálicas, os contentores selados a cadeado, e há volumes envoltos por amarras; e medas de sacas de ráfia, que a seu tempo seguirão viagem. Um pouco mais à frente, jazem lado a lado duas grandes boxes de madeira com escritos à vista, enormes caixas cheias de roupa da América. Alguém as reclamará na alfândega e as destinará à casa de uma gente emigrada que decidiu regressar de vez à ilha. Volta trazendo consigo os móveis de estimação, roupas do frio que cheiram a naftalina, mechins domésticos e brinquedos americanos para as crianças da família.
Quando já nem a avista lá para o fundo do cais, Gil põe-se de volta à cidade. Deserto por emborcar um bom copo de uísque. Beber sozinho com os seus pensamentos, com o vazio da partida de Cláudia a ensombrar-lhe o coração. Habituara-se a contemplar a sua velha tristeza no fundo dos copos, com o tilintar das pedrinhas de gelo contra o vidro e elas a minguar, a dissolver-se na lenta corrosão da bebida. Nada melhor do que o silêncio e o uísque para apagar os rastos deixados na lama dos caminhos.
Porque se embeiçara por ela, e logo ao primeiro olhar, a ponto de lhe ter apetecido chorar ao vê-la partir para aquele finisterra do mundo sobre o mar? Fora em tempos um rapaz feliz na sua alegre cidadezinha da Horta, com a montanha em frente, tão perto que parecia entrar-lhe pela janela. O mar do Canal entre as duas ilhas, Faial e Pico, trazia de manhã a montanha de lá para cá e levava-a de volta ao fim do dia. O sonho dele sempre fora viver ali, na ilusão verdadeira dessa paisagem. Veio um dia a São Miguel a uma entrevista de emprego numa agência de viagens, e foi o escolhido. Quando almoçava numa esplanada, alguém lhe apresentou a Etelvina, que também trabalhava na agência. Trocou um sonho por outro: cedeu-o a uma ilha muito maior do que a sua. Depois, o jornalismo. Tendo sabido que o jornal Quotidiano estava a recrutar um correspondente na região, meteu-se no primeiro voo para Lisboa. Entrevistado por um homem bilioso, um tal David Matos, que o massacrou com exigências de rigor e recomendações sobre os modos de escrita, veio de lá afinal com um contrato de trabalho e de credencial na mão.
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A custo lograra o chefe Matos vencer a relutância de Mariano em conceder a entrevista. Resistiu-lhe do princípio ao fim, arisco e indisposto com a insistência dele, e num crescendo de vozes, argumentos e refutações de parte a parte. Ameaçou desligar-lhe o telefone na cara e deixá-lo a falar sozinho. Qual deles o mais teimoso, deram largas a insultos e a acusações mútuas – até ambos caírem em si, envergonhados, com pedidos de desculpa pelos excessos de cada um. Acabaram a admitir que tinham admiração um pelo outro, dois açorianos de nome feito e nome honrado, David Matos, da ilha Terceira. a chefiar a redacção de um jornal de prestígio nacional, e Mariano Franco, de São Miguel – cada qual na margem oposta do pensamento político. Valia-lhes que nenhum deles cultivava as rivalidades que persistem entre a Terceira e São Miguel, Naião e Rabo‑Torto para lá, Corisco mal‑amanhado e Japonês, para cá – umas guerrinhas estúpidas, em nada compatíveis com um patriotismo açoriano.
Foi aí que o outro lhe expôs as razões da sua reserva. Tinha-se na conta de um homem sem história na ilha, e com pouco ou nada para contar. Anos volvidos sobre tudo quanto fora dito e ficara por dizer, não lhe parecia razoável nem oportuno vir agora a público e defender-se do passado e das suas razões. A que título e propósito o faria? Sem interesse por nada e coisa nenhuma, entregara-se à paz rústica dos seus campos, a ouvir a música bucólica dos chocalhos no meio da bruma e a ver com enlevo as suas vacas a remoer, a enxotar as moscas, a pastar o trevo e o azevém que mandara semear nas terras agrícolas de outrora. Isto dizendo, soltou uma risada escarninha, que mais pareceu ao Matos uma mordidela irónica do que uma manifestação de desprezo.
– O mais – concluiu, já com uma penumbra de melancolia na voz – são águas passadas. E não movem moinhos.
A seu ver, a chamada «geração seguinte», nascida dos sacrifícios dos seus progenitores, não chegara a existir enquanto tal em Portugal. Depois da sua, nenhuma outra soube viver a nova e a velha realidade. Os filhos e os netos de hoje limitam-se a extorquir benefícios e a obter o que pretendem de pais, avós e amigos. Não sobra da cabeça deles qualquer memória histórica nem lugar para nada, nem motivações de espécie alguma para as causas comuns.
– Falar a essa geração inexistente para quê?,
se afinal ninguém a educara a ouvir nem a respeitar os mais vividos. Tinha as suas contas saldadas. Pagara-as ele nos pelourinhos da justiça, que o condenou por danos, ofensas e dívidas que não contraíra – só para poder voltar a casa, sentar-se no chão, estender-se à larga na sua cama, até se lhe povoar a cabeça de pensamentos futuros.
Quis, porém, o Diabo que as iras da besta maligna do Matos o persuadissem a defender publicamente a sua honra. Intuíra, e bem, que só as questões da honra e do bom-nome operariam nele a cedência à confissão da sua vida. Aproveitou para o convencer a tornar público por que motivos andou ele conhecido no país inteiro por «bandido» e por «terrorista». Os leitores do Quotidiano queriam saber quem atentara à bomba contra alvos escolhidos; quem ameaçara pessoas, com o dedo aferrado ao gatilho da pistola ou de metralhadora em punho – nesses dias de guerrilha urbana que não tivera quartel nem cabeça, nem frente nem retaguarda. E se fora ele quem fizera explodir bombas artesanais nas casas de alguns políticos, nos jardins do palácio, numa fábrica, no aeroporto e no Coliseu durante um comício eleitoral; e se disparara sobre as casas onde então residiam outros dignitários da ilha: o juiz da comarca judicial, o comandante militar e o chefe da polícia, os representantes da chamada «potência ocupante». Imagine-se lá, Portugal uma potência continental!