“O vírus conhecido sim visível/ tranquilo permitido o desespero/ vento veneno têmporas contigo”, escreve Gastão Cruz (GC) em A Doença (Portugália, 1963). Num livro onde se enunciava o “sentido de declínio” respeitante a um tempo – os anos 60, a Guerra Colonial, o Estado Novo – de que outro vírus vinha falar o poeta-crítico de Poesia 61 senão do vírus do fascismo, circulando como veneno num corpo coletivo, o Portugal doente? Em As Leis do Caos, de 1990, GC traduz um poema de W.B.Yeats, “Morte”, onde a alusão ao homem como animal “que nada espera ou teme”, e que conhece a morte por a ter criado – “ele criou a morte/ conhece-a até ao osso” – é um modo de sublinhar a evidência da morte causada por doenças que minam o organismo; doenças, fruto dos vírus, agentes microscópicos, emblemas, se quisermos, da malignidade, como a vê Jankélevitch (La Mort, 1977).
Em Existência, publicado em 2017, um poema intitulado “As Flores do Mal em 1983”, de novo vem colocar como móbil da poesia de GC a doença, o vírus como signo e sinal da efemeridade de tudo: “De repente ou nem tanto o edifício/ não muito sólido porém talvez/ feliz dos nossos dia / mostrou-se estranhamente// vulnerável ao mal total […]// não tenho outra forma de/ dizer o que seja uma tal matéria bruta/ assim abrupta-/ mente gerando pânico ao/ dar flores fatais que cresceriam para dentro/ da carne e da esperança/ primeiro no avião como notícia/ lida numa newsweek adquirida à partida/ para uma curta viagem de rotina/ e depois expandindo-se pedra/ negra em incessante crescimento/ ou flor carnívora/ que pertencesse ao reino mineral” (p.57).
Hécate, a deusa do imprevisto, é aqui o vestígio do vírus, a flor do mal, de baudelaireana memória, a metáfora exata para nomear essa “pedra negra”, o mal tentacular que cresce “para dentro da carne e da esperança” “gerando o pânico”. A Sida mutável flor carnívora, vírus da carne associada à leviandade e por isso castigo flagelador, na ótica de muitos que não compreenderam a democracia desta doença.
Para Susan Sontag, em A Sida como Metáfora (Quetzal, 2009, 1ª ed. 1988), essa epidemia inscreve-se, de resto, no conjunto de pandemias que, ideologicamente, certos poderes interpretam como sofrimentos que recaem sobre sociedades corrompidas. No caso, especialmente na década de 1980, as comunidades que sofriam, no dizer de Pat Buchanan (deputado republicado), de uma “bancarrota moral”.
Assim, escrevendo entre dois tempos, os anos 60 e os anos 80 até hoje, Gastão é um dos poetas portugueses que melhor soube interpretar a idade virulenta, e violenta, em que nos encontramos. Do vírus do fascismo, às epidemias sem metáfora que grassam e acompanham a nossa história, a poesia tem dito, de forma veemente, pela força das imagens, a condição humana. Diz sobretudo a condição do corpo humano tomado por um veneno moderno ou por ancestrais venenos. No Levítico, livro da tribo de Aarão, já encontramos nos versículos 12, 13 e 14 e seguintes, referências à lepra. Balduíno IV morre com 24 anos; Daniel Defoe escreve o seu diário ficcional, tornando o narrador coevo da peste de Londres de 1665, que causou 100 mil mortes. A lista é longa.
Se formos ao fundo da questão das doenças e suas representações nas artes, a conclusão é complexa: se a poesia ou a pintura, a música, o teatro ou o romance podem figurar as nossas doenças, certo é que a própria arte pode conceber-se como patologia. “Mal de Stendhal”, era esse o nome do vírus que afetou os que se apaixonaram por cidades. Shopenhauer, Nietzsche (que sofria de epilepsia e de sífilis), Freud, eis alguns dos que documentam o seu mal-estar (vertigem, perda de identidade, alucinação) ao viajarem por lugares infetados.
Com efeito, biblicamente, a Cidade é vista como símbolo do mal e dos vícios e a tradição bucólica reenvia-nos à Grécia e Roma e a autores clássicos (Teócrito, Virgílio, Horácio) que gravaram a bronze essa oposição simbólica. Camões escreverá sobre o amor maligno à luz da tradição neoplatónica, mas subvertendo-a. O amor é uma discensus ad inferos e causa primeira de perdição e desconcerto, loucura e morte. A medicina antiga não hesitava no diagnóstico: a melancolia era a doença própria dos artistas, regidos por Saturno, o deus devorador. É toda uma linhagem que se estende até às mais diversas tendências e estilos, com enfoque no mal-du-siècle dos poetas oitocentistas, de William Blake (The sick rose) a Baudelaire, que exalta o lúgubre, o fantasmagórico.
Vítima também da Sífilis, o autor das Fleurs du Mal tem em poemas como “O Esqueleto Voador”, “Dança Macabra”, ou em “Mulheres Condenadas” das peças mais reveladoras dos vírus que se abatiam sobre a Paris do II Império. Tal como na Londres vitoriana, surtos de cólera, tifo e peste, além da tísica e da sífilis, faziam parte do quotidiano das cidades negras do século que viu nascer mitos literários que de algum modo espelham os perigos de uma industrialização caótica em que o crime, a luxúria e a depressão se conluem.
Como lugar das doenças modernas, é a associação entre cidade, vírus, morte e mal uma espécie de caldo cultural a que a poesia moderna recorre para se edificar, como arte da palavra, enquanto “doença da linguagem”, no dizer de Ruy Belo (1933-1978). São dele os versos de “Um dia não muito longe não muito perto”, irónica visão do vírus desconhecido que ataca o poeta: “Um dia não muito longe não muito perto/ um dia não é que eu pareça lá muito hirto/ entrarás no quarto e chamarás por mim/[…] /hás-de dizer que pareço morto/ que disparate dizias tu que houve um surto/ não sabes de quê não muito perto”.
Mas regressemos aos anos 80 do século XX. Se hoje o ataque aos que foram vítimas da sida nos parece nefando, não esqueçamos que essa visão escatológica do mal regressa sempre que um novo ou velho vírus (sofrida a mutação) nos visita. Nessa ocasião redefinem-se os contornos que desenham as sociedades, as suas instituições e hábitos, os seus valores e prioridades. Convém, pois, lembrar: “As ideologias autoritárias”, escreve Sontag, “têm um manifesto interesse em promover o medo, um sentimento de iminência da tomada do poder por seres estranhos – e para tal as doenças reais constituem um material muito útil. As doenças epidémicas abrem as portas aos apelos à proibição da entrada de estrangeiros, de imigrantes […]. A Sida foi também uma dádiva para o regime de apartheid […]. A epidemia da Sida constitui uma projeção ideal para as paranóias políticas do Primeiro Mundo” (p.157).
Como invasor, exército organizado, inimigo invisível, essa epidemia, que ceifou as vidas de Nureyev, de Cazuza, Freedie Mercury, António Variações, de Renato Russo e Rock Hudson e que tem no filme “E a Banda Continua a Tocar” (1993) o zénite da construção dum imaginário fatal, de novo ressurge com a atual crise pandémica do Coronavírus. Não por acaso, um dos remédios que melhor parece atacar a Covid-19 é um antiviral usado no tratamento do HIV. Curiosa tangente…
Note-se, em Sontag, a similaridade da descrição dos vírus a inimigos que só em linguagem militar podem ser concebidos. Para melhor insuflar de medo e de ânimo as populações, levando-as ao combate, os vírus são inimigos oportunistas em todos os sentidos, a guerra que nos movem não é convencional. A apropriação foi imediata: os nazis e a urgência de eliminar espécies consideradas sub-humanas (judeus, ciganos, negros, deficientes físicos ou mentais); o exército americano, na Segunda Guerra Mundial e a propaganda contra o império japonês descrito como vírus a vencer.
No início do século XX, no quadro da I Guerra Mundial, poemas de Else Larker Schuler (“O fim do mundo”), de Rudolf Leonhard (“Libknecht morto”), de Paul Sheerbaart (“Fim do mundo”) ou de Gottfried Benn (“Homem e mulher passeiam pelo pavilhão das cancerosas”) visionam o inferno não só desse conflito, mas as suas consequências virais: as doenças associadas à ruína absoluta do Velho Continente possuído de loucura, doente de cancro e de peste. E na ressaca da guerra, em 1918/19 a gripe espanhola. Appolinaire, o grande poeta francês, é uma das suas vítimas, bem como o pintor Egon Schiele.
Fernando Pessoa, contemporâneo da I Guerra Mundial, refere por diversas vezes doenças do foro psicológico no Livro do Desassossego. Em carta a Côrtes-Rodrigues, de 1915, a doença de que o poeta padece é de natureza psíquica, “enquanto lá fora, a Guerra”. Isto sem falar da histero-neurastenia a que alude na célebre missiva a Casais Monteiro, de janeiro de 1935, reforçando o que já em 1919 tinha escrito a dois psiquiatras franceses (Hector e Henri Durville) pedindo informações sobre a terapia magnética. Um mês antes de morrer, escreve Pessoa: “tenho estado sob o influxo de estados nervosos de diversas formas e feitios […] Tenho-me sentido uma espécie de filme psíquico de um manual de psiquiatria, secção psiconervoses” (carta a Tomás Ribeiro Colaço, 10 de outubro).
Antes de Pessoa, alguns poetas portugueses puseram em poesia os males de que sofriam. A escrita como terapia ou esforço de compreensão do mal é, nesse contexto, o paliativo. Lembremos, de entre muitos, José Duro (1975-1899), autor do poema “Doente” (“Que negro mal o meu! Estou cada vez mais rouco!/ Fogem de mim com asco as virgens d’olhar cálido…/ E os velhos, quando passo, vendo-me tão pálido/ Comentam entre si: coitado, está por pouco!”) e Cesário Verde (1855-1886), que viu os três surtos de cólera e febre tifóide levarem-lhe irmãos não escapando ele mesmo à tuberculose. No “Nós”, os versos iniciais enquadram o drama: “Foi quando em dois verões seguidamente a Febre/ E o Cólera também andaram na cidade,/ Que esta população, com terror de lebre,/ Fugiu da capital como da tempestade”.
Neste conspecto, António Nobre (1867-1900) tem no seu Só (Paris, 1892) das mais contundentes poéticas da dor e da doença. Anto, proto-heterónimo que assina o livro e é uma projeção de Nobre, deseja a suprema paz depois de conviver com o vírus que lhe “escangalhava os pulmões” (leia-se o soneto 18 ou “Males de Anto”, ou ainda “António”, modelos da tragicidade nobriana).
Se a tísica é um dos horizontes do Só (“Quando ela passa à minha porta/ Magra, lívida, quase morte […] / Meu coração põe-se a chorar”), a esse horizonte tumular apontam as obras de outros tantos autores, portugueses e não só. Alguns exemplos: Castro Alves (1847-1871), Cruz e Sousa (1861-1898), e Álvares de Azevedo (1831-1852), Casimiro de Abreu (1839-1860), poetas brasileiros de finais de Oitocentos, inícios do século XX, morreram em virtude da tuberculose. Manuel Bandeira (1886-1968), marcado pelo bacilo de Koch na sua juventude, autor de Carnaval (1919), redige em “Pneumotórax” uma das mais incisivas imagens do vírus: “Febre, hemoptise e suores noturnos,/ A vida inteira que podia ter sido e não foi […]”; “O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado”, diz o médico.
Chopin (1810-1849), Franz Kafka (1883-1924), Emily Bronte (1818-1848), Lord Byron (1788-1824), John Keats (1795-1821), George Orwell (1903-1950), Friedrich Schiller (1759-1805), eis outros que o “mal dos poetas” e dos artistas levou, havendo, desta doença, registo em documentos de diversa natureza, pelo menos desde o Antigo Egito.
Se não há uma conotação de teor sexual-moral, como houve nos anos 80 e 90 com a sida; se não existe, quanto à Covid-19, interpretações de ordem mítica (a peste medieval que em Boccacio, no Decámeron é vista como castigo divino e leva ao confinamento por mil dias); se estas duas recentes pandemias (Sida e Covid-19) em pouco ou nada se assemelham à tísica como doença própria dos génios e de almas sensíveis, nem por isso a crise que atravessamos se desvincula de algo que tem origem nas décadas de 80 e 90 do século passado. O Coronavírus (tem nome e apelido juntos, é um corpo estranho de difícil entendimento) é transfronteiriço e, nessa medida, fruto da globalização. Anthony Tao, poeta chinês, aludindo a essa dimensão espectral, escreve em Fevereiro deste ano: “O vírus é um inimigo que luta sem regras […]/ mas falta-lhe país”.
Slavoj Zizek declara: os vírus têm uma enorme vantagem sobre nós – são cegos, agem sem mapa definido. Por isso, o combate é, não raro, desigual. Essa mesma imagem estava já fixada num poema de Tim Duglos, de 1982, a respeito do HIV e se recuarmos a um poeta como David Mourão-Ferreira (1927-1996) lá temos, em Os Quatro Cantos do Tempo, nos III e IV Cantos, poemas onde a temática da morte e do vírus/vício sexual é o imo da construção do ambiente crepuscular: “Elegia de Outono”, “O Navio”, “Cabarés”, “Litania de Sombra”.
Em Portugal, a poesia de intervenção, ou alguma poesia de maior compromisso social, associa o vírus dos totalitarismos ao medo. Desde logo, em Alexandre O’Neill (1924-1986) “Perfilados de Medo”. Em Peregrinatio ad loca infecta, de Jorge de Sena (1919-1978), lê-se um dos momentos de esconjuração mais profundos da nossa poesia quanto a um vírus – Portugal. Na poesia de Fernando Assis Pacheco, poemas de Catalabanza, Quilolo e Volta (1972), a fotografia da guerra em África vivida como doença que arrastou toda uma geração; e ainda antes, o soneto com que fecha Cuidar dos Vivos (1963): “Há um veneno em mim que me envenena,/ um rio que não corre, um arrepio,/ há um silêncio aflito quando os ombros/ se cobrem de suor pesado e frio”.
De resto, a palavra “vírus” significa justamente “veneno”. É como um veneno que os vírus se disseminam pelo corpo, infetando-o. Invisíveis, letais, fantasmas pairantes, ameaças latentes, do bacilo de Yersina pestis, de 1348, que se alojava nas células dos gânglios linfáticos, formando bubões (daí, peste bubónica), à peste de Marselha no século XVI e à de Londres, que Donne retratou, já nas tábuas de Hamurabi, rei da Babilónia, datadas do século XVIII a.C., a lepra e o tifo eram como que anjos exterminadores.
Gonzalo Rojas, poeta chileno, há não muitos anos publicava justamente um poema em que evocava a lepra, logo traduzido, na revista brasileira Modo de Usar & Co, por Fabiano Calixto. Na verdade, em muita poesia vibra, insinuante, a morte como tema obsessivo e, logo, a doença, os vírus como limites impostos à nossa natureza. A varíola, o ébola, a cólera, o zika, as gripes, eis alguns velhos vírus que podem, dadas as alterações climáticas, sofrer mutações. Com o degelo, fala-se já de novos vírus que atacarão em breve a humanidade. Camilo Pessanha (1867-1926), em Clepsidra (1920) refere as “Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise” num “Poema Final”, concordante com o próprio título do seu livro: Cleptô (roubo) e Hidra. Que queria Pessanha com tão estranho, posto que sugestivo, título? Lembrar a Hidra de Lerna, serpente marinha com várias cabeças que nascem e se desenvolvem à medida que são cortadas, símbolo dos vícios que o homem não consegue transpor.