Hoje, como naquela noite, é tarde. Era tarde, e a menina
– Não tenho sono.
Estava desacostumado a deitá-la. Após o divórcio, todos os meses passavam um fim-de-semana juntos. Depois, a ex-mulher foi para fora, atrás do engenheiro, e ele ficou quase um ano sem ver a filha. Combinaram que quando regressassem a menina passaria uma semana inteira com o pai. Assim foi. Leto tirou férias e construiu um plano. Sete dias seriam poucos em qualquer das circunstâncias, mas a quantidade de actividades que tinha planeado era tão grande que excluía a possibilidade de imprevistos.
– Para a cama, amanhã temos um dia muito comprido.
Cansado, faltava preparar a lancheira.
– Queres que leia uma história?
– Pode ser.
Reparou depois que não tinha livros infantis. Tentou contar uma história recorrendo à memória da sua própria infância, mas ela não adormeceu. Usara porventura demasiadas explosões. Talvez a filha tivesse medo de baleias. Talvez não lhe devesse ter dado Coca-Cola ao jantar. Talvez a sua infância não fosse rica em histórias bonitas.
– Queres que ligue a televisão?
Má ideia. Pistolas, vampiros, publicidade. Desligou a televisão e deitou-se junto da filha. Baixou o tom de voz e cantou baixinho trechos de música de que se ia lembrando.
Sentiu o corpo ficar pesado e os olhos quentes. A filha, quieta, pensando que o pai adormecera. Ele, quieto, querendo não acordá-la.Ficaram os dois em silêncio até ele se levantar devagarinho, preocupado com o almoço do dia seguinte.
– Não tenho sono
afinal.
– Tens de dormir. Já é tarde, e não posso ficar aqui a noite toda à espera que adormeças.
Admite agora que aquela não era a melhor maneira.
– Não é que não queira estar contigo, mas amanhã temos um dia comprido. Vais descansar bem esta noite. Temos um dia cheio de coisas boas.
Reconhece que não era esta ainda a melhor maneira. O entusiasmo e a curiosidade despertaram-na.
– Vamos fazer o quê?
– Logo vês.
– Mas eu não tenho sono.
– Não tens tu mas tenho eu.
– Onde vamos amanhã?
– Fui trabalhar ontem à noite e ainda não dormi. Tenho muito
que fazer.
– Desculpa.
Descarregou o cansaço em cima da filha. Esforçou-se imenso para que aquela semana ficasse gravada para sempre na memória dela. Custava-lhe admitir que começara tão mal. Como se não bastasse, a outra inundava-lhe o telemóvel com mensagens de cinco em cinco minutos, perguntando se a filha se encontrava bem, se tinha comido, se já estava a dormir. Era também isso que o irritava. Desta vez, iam todos perceber que ele era um bom pai. Se não tem sido até agora é porque não lhe dão oportunidade. Levaram-lhe a filha para longe atrás do engenheiro. E ele aqui, acusado de ser um pai ausente.
Trabalhava de noite e dormia de dia.
– Nunca estás com a menina.
Saía de casa para o trabalho depois do jantar.
– Já vais? Nunca deitas a menina.
Ele sabia disso. Sofria com isso. Mas fazer o quê?
– Tenho de ir trabalhar.
Por momentos, a sua memória levou-o a essas viagens intermináveis, feitas de estômago vazio, com a garganta tolhida pela raiva, com o choro esmagado entre os dentes. Saía de casa envergonhado. Conduzia o carro lentamente pela noite levando no banco traseiro, vazia, a cadeira da filha. Inútil, a protecção do sol colada à janela simulando o sorriso de um urso. Olhava o espelho retrovisor e imaginava-a adormecida, vermelha de calor com a chupeta saltitando na sua boca.
Adormeceu.
Era assim quando estavam juntos. Com o carro em andamento, adormecia rapidamente.
Esta recordação despertou-o.
– Vamos passear.
Percorreu duas vezes o quarteirão, o que se revelou insuficiente. Fugiu do centro da cidade a fim evitar as luzes e o pára-arranca. Escolheu uma estrada secundária que fazia quando ia visitar os pais. Estava uma noite amena sob a vigília de um céu balsâmico. Dentro do bolso vibrou mais uma vez o telemóvel. Lá estava a outra a querer saber da miúda como se ele não soubesse tomar conta da filha. A imagem da ex-mulher aos gritos
– Nunca quiseste saber da menina, qual é o teu problema? Vou-me embora, vou.
escurecia-lhe o olhar. Deteve-se no espelho retrovisor, recuperando os dias felizes. Aguardando o exacto momento em que a veria fechar os olhos. Esta noite seria diferente. Levá-la-ia ao colo para a cama e só adormeceria depois de a beijar, depois de saturar o peito inquieto de amor por aquela criatura doce e inocente. Olhá-la-ia até gravar na memória a imagem dela. Jamais a humilhação das fotografias nos dias de solidão.
O volante sacudiu-lhe os braços violentamente quando o carro derrapou na entrada de uma curva. Controlou o veículo, evitando assim um eucalipto enorme. O embate provocaria a morte dos dois. Desviado, o carro derrapou até à outra via, ficando parado a ocupar um pouco da faixa de rodagem. A parte da frente do carro estava virada para a estrada, com o capô a obstruir a circulação e a traseira na berma. Leto apercebeu-se de que uma das rodas estava suspensa na ravina, deixando o carro apoiado apenas em três rodas. A sua preocupação era tirar a filha do carro o mais depressa possível, com medo de que, ao desfazer a curva, alguém chocasse contra eles. A estrada não tinha qualquer iluminação nem traçado. A filha estava acordada, suspensa no tempo, com os olhos vazios e o corpo já dominado pelo sono, arrancado ao sossego pelos solavancos da derrapagem. Quando os seus olhos encontraram os do pai começou a chorar, gritando primeiro, soluçando depois. Era urgente tirá-la dali. Dominado pela pressa de proteger a filha, puxou o travão de mão, tirou o cinto de segurança e abriu a porta. Quando levantou os pés dos pedais percebeu de imediato que se esquecera de desengatar o carro. O enorme solavanco fê-lo deslizar ligeiramente para trás, inclinando a traseira na direcção da ravina. Ao perigo de serem abalroados adicionava-se agora o de cair na enorme escarpa. Poço negro de árvores e pedras que só terminava nas águas escuras do rio. Leto tinha de agir rapidamente.