Depois de O Sangue por um Fio (Poesia), Sérgio Godinho estreia-se na ficção com Vidadupla, uma coletânea de nove contos que dão a conhecer o lado B da escrita de Sérgio Godinho. Ficções impressionistas e impressionantes, escritas num vaipe, mas buriladas como peças de joalharia. O JL pré-publica o primeiro conto, O Lençol, e fala com Sérgio Godinho sobre a segunda vida da sua escrita
JL: O seu talento com as palavras é bem conhecido, por isso não surprende que o revele num outro suporte. Contudo, o registo destes contos é muito diferente. Onde estava isto escondido? Sérgio Godinho: Não sei muito bem. Foram escritos num período curto. Quando encontro um caminho de criação tenho que o perseguir e até fico com borbulhas quando não o consigo fazer. Antes escrevi o livro de poemas O Sangue por um Fio e andei a perseguir essa linguagem. Aqui foi a mesma coisa. O uso do adjetivo sucessivo, um certo ritmo da frase, o voltar atrás na narrativa para encontrá-la mais à frente…. Não é como se estivessem na gaveta, estes contos foram feitos como num vaipe prolongado. Deixei um a meio, mas a determinada altura senti que este era o tempo certo e os contos já estavam muito burilados. Foi como o trabalho nas canções. São peças de joalharia que têm de ser cuidadas.
Não é um livro de contos convencional, passam emoções e estados de espírito, mas não são histórias com princípio, meio e fim… Não me apetecia encerrar as histórias como num romance. Há um momento em que o conto já disse o que se queria dizer. O teclado vai indicando por onde a história vai, sem estrutura predefinida. Descobre-se um caminho e depois joga-se com as mesmas pedras, poética e narrativamente.
Como no conto em que, já próximo do final, surge: “Queria falar da minha história de amor, mas está difícil”… Chamei ao conto “Queria falar da minha história de amor” e depois começo a contar algo completamente diferente, mas na verdade, aos poucos, vai-se contando ali uma história de amor. E é por isso que no fim acaba dizendo: “É disso que eu queria falar”.
Acha que os contos estão para a literatura como as canções estão para a música? Algo disso. Também se diz que os contos são a poesia e o romance a prosa. Nos contos há uma linguagem poética mas também concreta, sobretudo porque não são naturalistas. Não há muitos detalhes a jogar sobre o tradução do quotidiano. Mesmo nas minhas canções não me reconheço quando me chamam escritor do quotidiano, porque o meu quotidiano é transformado por uma visão simbólica.
Podemos deduzir que, como diz num dos contos, “isto é só o epílogo do prólogo”? Não necessariamente. Sei que vou continuar a escrever ficção. Deu-me grande gosto solidificar estas linguagens. Não quer dizer que vá logo de repente recomeçar a escrever. Fica-se sempre um pouco vazio, ou esvaziado, quando se acaba um trabalho. Tenho a cultura dos livros na minha educação. A minha avó paterna era dona de um alfarrabista. A literatura e a música sempre existiram a para em casa dos meus pais.