A publicação de O Enigma de Zulmira, em 2002, veio confirmar a existência de duas fases distintas na produção romanesca de Vasco Graça Moura (VGM). A primeira, que designaríamos por fase estético-realista, perfaz o arco entre 1987 e 1993 e é constituída pelos seus três primeiros romances: Quatro Últimas Canções (1987), Naufrágio de Sepúlveda (1988) e Partida de Sofonisba às Seis e Doze da Manhã (1993); a segunda, sobretudo realista, é constituída pelos seus últimos romances: A Morte de Ninguém (1998), Meu Amor, Era de Noite (2001), O Enigma de Zulmira (2002) e Por Detrás da Magnólia (2004). Com este último romance, como veremos, VGM assume-se como um dos continuadores atuais de uma voz narrativa do Norte, prolongamento, nos finais do século XX, princípios do XXI, das temáticas especificamente camilianas. Por seu lado, Alfreda, ou a Quimera (2008) estatui-se como a síntese das duas fases, abrindo caminho para a prática da novela camiliana, que o autor exercitará com mestria em três narrativas exemplares: O Pequeno-Almoço do Sargento Beauchamp (2008), O Mestre de Música (2010) e Os Desmandos de Violeta (2011).
Na primeira fase, numa autofruição estética da escrita, por vezes totalmente autofágica, assassinando a lógica da ordem narrativa, o texto é filtrado por uma apuradíssima sensibilidade cultural clássico-erudita que o autor ostensivamente evidencia, esmagando o leitor com referências para as quais o leitor comum não está preparado. Dê-se como exemplo a descrição da tese de Catarina em Naufrágio de Sepúlveda (pp. 108-115) ou inúmeras interpretações de peças e acordes musicais em Quatro Últimas Canções. Tal tem como significado que, nesta primeira fase, praticando, em fundo, uma narrativa realista e, em forma, um esteticismo diletante, melómano e literato, vá construindo uma obra de culto, reservado a um grupo de happy fews, tão literariamente esclarecidos quanto o autor, não conseguindo atingir, em termos sociais, senão o que a crítica literária francesa designa por un succès d’estime.
Na segunda fase, o texto de VGM vai perdendo algo da sua carga referencial erudito-estética, por vezes excessiva, deixando sobretudo vir ao de cima a narração realista de episódios da vida portuguesa, continuando a “mostrar”, como em retrato sintético, a radical alteração da estrutura familiar da alta burguesia do Norte e a rotação da escala de valores a ela ligados. O Enigma de Zulmira, romance sobre os meandros da PIDE e da luta clandestina do Partido Comunista em meados do século XX, constitui-se como uma pequena obra-prima da arte de contar uma história, refinando os diversos componentes do estilo acima aflorados, agora levados ao primoroso êxtase da técnica de construção de mise-en-abîme, denunciada pelo narrador, por exemplo, na p.38 ou no terceiro parágrafo da p. 51, através da manipulação de três tempos e sete espaços diferentes.
Em Por Detrás a Magnólia e Alfreda, ou a Quimera, VGM assume-se como continuador literário de uma genuína voz ou olhar do Norte, prolongando e atualizando a visão estética de Camilo Castelo Branco. No interior de um realismo formal, cultiva nestes dois romances uma constelação de valores que, mais do que em narrativas rurais, possui o seu apogeu ideológico nos autores nortenhos: um vitalismo instintivo, uma psicologia de animal da terra, defensor da salvaguarda do nome e do pecúlio familiares sobre a quezília das partilhas e das vinganças dos desenganos, um paganismo panteísta que identifica a natureza com uma lágrima de Deus (Teixeira de Pascoaes), transfigurada numa paisagem humana triste, atestada de obstáculos, que são simultaneamente provas da fé e ação dos homens, um espírito moldado carne em alegria pagã, que convida à exuberância, às ações extremadas, próprias dos heróis ou dos loucos, criticados pela sensatez burguesa, que reduz o desejo de infinito ao interesse familiar, e pelo ceticismo individual, que, no entanto, não quebra a força dos braços, sempre dispostos a lutar contra a má sorte ou a resistência numa teimosia de lavrador habituado a domar terra, flora e fauna.
Também habitam o desenho das personagens o pudor do corpo na mulher e o horizonte libertino no homem, uma espécie de naturalização dos sentimentos em que irrompe, a espaços, o destino de uma grande paixão, reconstruindo genealogias, levantando solares e casas apalaçadas, posteriormente tornadas totens familiares.
Alfreda, ou a Quimera evidencia-se como um dos seus melhores romances, tendo paralelo com Por Detrás da Magnólia (Grande Prémio do Romance da Associação Portuguesa de Escritores em 2004) tanto em construção formal (labiríntica, com incorporação de inúmeros textos plurais na unidade narrativa, um pouco à semelhança do estilo da primeira fase) quanto em conteúdo diegético.
Finalmente, VGM despede-se da ficção com a publicação daquelas três narrativas – de 2008, 10 e 11 – nas quais regressa ao seu estilo mais fundo na prática da arte da novela, um estilo eminentemente camiliano. Sobre um horizonte histórico (as invasões francesas, a fuga de D. João VI para o Brasil, a reacção inglesa, a expulsão do exército invasor), o autor, contra o tempo longo e o avanço demorado da ação, desenha um ritmo narrativo galopante (29 capítulos em 133 pp, em O Pequeno-Almoço do Sargento Beauchamp; 36 cap. em 163 pp., em O Mestre de Música) e um intrincado labiríntico de peripécias, com mudança brusca de ação e efeito suspensivo, próprios da prática novelística (folhetinesca) de Camilo, em Os Desmandos de Violeta. Não existe hoje, em Portugal, nenhum autor que, atualizadamente, pratique com tanto acerto a arte da escrita ao modo de Camilo como VGM – nem mesmo Mário Cláudio, que dele guarda a vernacularidade da linguagem e o estro instintivo nortenho do dramatismo camiliano.
Nestas três novelas de Vasco Graça Moura opera-se uma autêntica ressurreição da prática camiliana da escrita.