Uma jovem, um jovem, uma varanda e uma noite em que de repente falta a luz, estes são os ingredientes com e sobre os quais se constrói o mais recente livro que Ondjaki oferece aos seus leitores. Numa feliz coincidência, o lançamento de Uma Escuridão Bonita ocorreu em simultâneo com a notícia da atribuição do Prémio José Saramago ao seu romance, publicado em 2012, Os Transparentes, assim distinguindo um texto notável de que aqui apresentei então uma leitura.
À elegância e poeticidade que caracteriza a escrita de Ondjaki, que os seus leitores bem conhecem e tanto apreciam, alia-se em Uma Escuridão Bonita a beleza etérea das ilustrações de António Jorge Gonçalves, que partilham com o texto as páginas destas “estórias sem luz elétrica”. De tal união do traço da palavra com o traço do desenho nasce um livro belo e delicado, construído a quatro mãos, que é tanto um objeto literário quanto um objecto artístico, que se desvenda pela leitura do texto em diálogo com as ilustrações que o iluminam. Há uma comunhão perfeita entre a matéria e a essência, conjugando-se todos os elementos para a criação de um universo efabulativo de encantamento e harmonia, que encontra nos jogos de sombras e luz razão de existência. Ao contrário do convencional branco da página de escrita, Uma Escuridão Bonita desvenda-se no contraste entre o negro azulado da página e o branco dos traços das palavras e das ilustrações, materializando graficamente a temática do entrecho.
A singularidade deste livro inscreve-se ainda no título surpreendente e desconcertante, que joga com o antagonismo e a contradição. Com efeito, a palavra central do título, escuridão, a única com função designativa, carrega em si imagens da ordem da negatividade, já que a ela associamos um leque de palavras que partilham o facto de remeterem para realidades marcadas pela falta de luz ou falta de alegria (consoante a utilização denotativa ou conotativa do termo). Ora a ideia de falta ou de ausência é aqui anulada pelo adjetivo que a qualifica, transformando as possíveis trevas, tristeza, cegueira ou ignorância em algo bonito.
Este caminho de leitura, apontado pelo título, é confirmado na epígrafe colocada em abertura do corpo do texto que retoma as palavras de “um velho muito velho que inventa as palavras” (onde reconhecemos uma personagem de Ynari, a Menina das Cinca Tranças). Pela voz do velho aprendemos que “o escuro às vezes não é falta de luz mas a presença de um sonho…”, enunciando desta forma uma sentença que nos dá o mote para a história em que vamos entrar, deixando-nos adivinhar a promessa de sonhos e emoções em devir.
Tudo começa quando, numa cidade, “A luz falhou de repente”, criando uma escuridão propícia à partilha de confidências e afetos entre os dois jovens que, da varanda da casa da avó Dezanove (personagem conhecida dos leitores de Ondjaki por ter sido protagonista do romance AvóDezanove e o Segredo do Soviético), observam uma paisagem urbana sem luz elétrica. Apesar de não nomeada, neste espaço reconhecemos a cidade de Luanda, muito devido à presença de avó Dezanove mas igualmente às referências à guerra que levou o pai do narrador e tantas crianças, permanecendo uma ameaça latente que os jovens desejam ver, para sempre, eliminada, fechada e esquecida “no saco das guerras”.
Para o jovem, a escuridão é a ocasião perfeita para estar com a sua companheira de varanda “de mãos dadas – os [s]eus lábios na espera dos lábios dela”. A sugestão de promessas, de que o excerto citado dá conta, estende-se a vários momentos desta estória de um pedaço de noite vivido a dois numa varanda, que se torna “concha e aconchego, como se dois mundos, nessas gotas de negrume, fossem um só”. E porque “a falta de luz também inventa mais tempo para as pessoas estarem juntas, devagar”, nessa bonita escuridão criada, os dois partilham afetos e ternura, cumplicidades e desafios, sonhos e descobertas.
A magia do momento é ampliada com a participação involuntária dos que passam de carro diante da casa da avó Dezanove, contribuindo para o surgimento do Cinema Bu, assim designado porque provoca espanto e admiração nos espectadores. O jogo de sombras e luz criado na parede branca quando os faróis dos carros incidem nela traz não só a dimensão do poder de imaginação, onde cada um “pode encontrar ali as memórias, os sonhos, e os futuros que mais deseja”, mas também uma representação da realidade social. A expectativa em torno do Cinema Bu é reveladora da capacidade de deslumbramento com coisas singelas, própria de quem guarda a capacidade de maravilhamento e é capaz de dar valor à simplicidade, talvez porque a isso esteja habituado.
Da(s) leitura(s) de Uma Escuridão Bonita perpassa uma sensação de encantamento que surge de um conjugação de elementos: de contar a história de um primeiro beijo, de estar magnificamente ilustrada e sobretudo da elegância da sua prosa poética. Encantamento, repito, é seguramente a palavra que melhor caracteriza este livro, que se apresenta como uma peça, bela e preciosa, da obra caleidoscópica que Ondjaki tem vindo a construir. Surge-me à mente a frase de Avó Dezanove, que questionada sobre o sentido da palavra poesia, depois de longamente pensar, respondeu: “A poesia não é a chuva, é o barulho da chuva”. Ora ‘uma escuridão bonita’ não é a história de um beijo é a sugestão da história de um primeiro beijo.