1. O “monte” da Esperança. Uma casa muito branca, caiada, com rodapé azul e peitoris de grega nas janelas, cá fora uma glicínia, olaias cheias de cor na primavera (uma chuva lilás com o sol por dentro) e oliveiras minhas amigas à volta do empedrado, os carros que chegavam da vila, os gados e os seus chocalhos, os cães de volta. O meu pai [o jornalista Urbano Rodrigues] partia de vez em quando por bastante tempo e voltava carregado de presentes, que espalhávamos pela tijoleira ou pelo chão de mármore da sala de jantar: soldados de chumbo, livros, estampas prodigiosas, que evocavam as terras longínquas de que ele nos falava.
O meu convívio, mais do que com os primos e primas que viviam a uns tantos quilómetros entre a alvura e os sortilégios de Moura, cujo castelo fabuloso dominava todos aqueles barrancos, olivais e terras de semeadura que se estendiam até ao nosso rio, era com os trabalhadores da apanha da azeitona, que passavam pelo “monte” e nos contavam mil histórias e nos contavam a vida como eles a viam.
Quando, nos meus 10 anos, nos mudámos para Lisboa, vindo apenas passar férias ao Alentejo, o “monte” tornou-se o paraíso sempre reencontrado. Mas pouco a pouco o meu olhar foi descobrindo a totalidade daquelas existências tão duras através dos grandes risos, das lágrimas e das surdas revoltas que até então me escapavam. Aos 12, 13 anos dava-me conta de toda a extensão do sofrimento e da pobreza da minha terra. A presença dos meus primos Maria do Carmo e Fernando Medina, o primeiro companheiro que me deu a ler textos “subversivos”, abriu-me para uma outra compreensão do mundo.
2. Na biblioteca do meu pai comecei a ler, quase ao acaso, livros que muito me marcaram, do Aquilino e do Cervantes a Gide, a Anatole France, Pierre Louis, Valèry Larbaud e Dostoievski.
No Liceu Camões, em tempo de guerra, a Civil de Espanha e a Segunda Mundial, havia grandes discussões entre aliadófilos e germanófilos nos corredores e no pátio, que terminavam às vezes a soco e a pontapé. Andámos na mesma turma eu, o Miguel [Urbano Rodrigues] e o Luís Filipe Lindley Cintra. Gostava de ler Os Lusíadas e de dividir orações e tanto de Matemática como de Português. Assumíamos de vez em quando, dentro e fora da escola, posturas de rebeldia, ainda sem causa bem definida.
Guardo da Faculdade de Letras recordações muito gratas, sobretudo das aulas do Nemésio e do convívio dos estudantes junto da antiga mesa de ping-pong, da cerca e da cisterna, ao pé da qual namorámos eu e a Maria Judite [de Carvalho]. Descobria então nos seus olhos verdes toda a sua complexa natureza e a retraída ironia quando ela fazia as caricaturas dos finalistas para os livros de curso. Outros mestres que nunca esqueci, o Hernâni Cidade, o Jacinto do Prado Coelho, a Andrée Crabbée Rocha, que viria a ser vítima da nossa greve de 47, onde estive ao lado do [António] Coimbra Martins, do Rogado Dias, do Orlando Baptista, do David Mourão-Ferreira.
Já no fim do curso houve a campanha do Norton de Matos e levei umas cacetadas da polícia à saída da Voz do Operário.
Veio depois o meu intervalo de vida em França (Montpelier, Aix-en-Provence, Paris). Seis anos a ensinar em Universidades estrangeiras e a ler uma infinidade de livros, a descobrir o cinema sem censura, a frequentar bibliotecas, o Teatro Nacional Popular. Conheci o Albert Camus, o Sartre, o Aragon, o André Maurois, até o Paul Claudel. O meu grande amigo Joaquim Barradas de Carvalho apresentou-me ao Edgar Morin.
O Artur Ramos e o Eduardo Lourenço eram companheiros e comensais de quase todos os dias. Lembro-me de ter ido com o Eduardo Lourenço ao teatro ver uma peça do Jean Anouilh e creio que também Le Diable et le Bon Dieu, do Sartre. Assisti à estreia em França de O Dia Seguinte, do Luíz Francisco Rebello e julgo ter visto todas as peças de Ionesco no pequeno teatro de La Huchette.
Quando o [Fernando] Namora e o Carlos de Oliveira vinham a Paris era eu o cicerone. Devorei nessa altura o que ainda me faltava ler do neorrealismo e inúmeros clássicos portugueses. Era o contrapeso do meu mergulho na cultura francesa, precisava de tornar à linfa lusitana, mesmo aos frades do séc. XVII, como Manuel Bernardes e Frei António das Chagas, e ia escrevendo Vida Perigosa e A Noite Roxa, que o Gaspar Simões (nunca pude pagar-lhe todo o apoio que me deu) colocou nos píncaros da nova literatura, com laivos de existencialismo. Na verdade eu frequentava às vezes os caveaux e lá estive ao lado da Gréco e do Boris Vian. Mas a filosofia da existência, que cheguei a estudar, era coisa bem diversa desse louco estilo de vida. Ainda recordo a imagem de Mademoisele la Mort, toda de negro trajada, das olheiras ao bico dos sapatos.
3. Depois foi o regresso. A Maria Judite queria voltar. E depressa eu reentrei no jornalismo, onde já me iniciara quando estudante, e pouco depois chamaram-me para a Universidade.
Viajei bastante, deixei bocados de experiência em Jornadas na Europa, De Florença a Nova Iorque; passei de raspão por guerras e revoluções (o primeiro conflito israelo-árabe, depois estive em Cuba, num congresso de escritores e artistas simpatizantes da revolução, clandestinamente, claro). Mas já então houvera a campanha do General Humberto Delgado, em que participei com algum estrondo (sobretudo a minha adesão no Diário de Lisboa). Pouco depois fui afastado da minha Faculdade. Doeu-me muito e só bem mais tarde, após o 25 de Abril, regressei à investigação e ao ensino, que preencheram muito da minha existência.
Mas a grande paixão foi sempre a escrita, alimentada por muitas leituras, que são paixões também, e pela vida vivida, o bom e o mau, a contemplação da beleza. Quantas pinacotecas percorri, quantas paisagens de Espanha, da Grécia, do Oriente muçulmano e muito mais tarde da Índia, da China e da África.
Seria impossível contar tudo isso. Às vezes uma parte desse passado foge-me da lembrança, outra parte foi ficando nos livros, transfigurada, dias e noites de perigo, clandestinos que transportei no meu carro, intentonas a que dei modesta ajuda, companheiras e companheiros de luta, o exílio do meu irmão Miguel, o Alentejo sempre, sempre, em visitas comovidas ou em agitação antifascista (em 1969) e depois da hora dos Cravos, assistindo à festa da libertação em Moura, ao começo da Reforma Agrária. Os anos 60 foram os de maior intensidade para mim. Escrevi romances e contos em que simultaneamente procurei (aliás procurei sempre) processos narrativos diferentes e a recuperação, a transformação do vivido, do observado, do sonhado. Fiz traduções, desde o Boccaccio a Robbe-Grillet, e tive um ritmo febril de produção, de Bastardos do Sol e Os Insubmissos a Terra Ocupada e Imitação da Felicidade. Tive também livros apreendidos, ameaças, perdas de emprego. As prisões por onde passei parecem-me hoje muito distantes os longos interrogatórios, o ter de negar teimosamente a própria evidência, os asquerosos curros do Aljube, noites de vómitos até à exaustão, quase cinco meses de isolamento em Caxias sem poder escrever nem ler, exceto a Bíblia, mas já perto do fim da clausura. A Maria Judite sempre de uma ternura e dignidade impecável, a olhar-me com espanto do outro lado das grades.
Os poemas que escrevi na cabeça, os esboços de contos garatujados em papel higiénico, o fim das tardes quando trepava na cela até à janela alta para ver os carros que, em liberdade, desfilavam na marginal.Só no Aljube durante algum tempo tive companhia. O Fonseca e Costa projetava já um filme sobre a resistência que viria a ser mais tarde Cinco Dias Cinco Noites. Morreram já o Blasco Hugo Fernandes e o Portela Santos, sobra o Manuel Fernandes, a quem eu escrevia cartas bonitas para a filha pequena.
Cá fora, numa noite de violência em 1969, fui espancado, mas resistindo, respondendo à agressão, até ao limite das minhas forças, por legionários e pides. Onde isso vai! Já ouvi outras pessoas contarem esse caso com pormenores que o tempo lhe acrescentou.
4. Dediquei-me a fundo à Faculdade de Letras durante mais de duas décadas após a Revolução. E a minha ficção, ao fim e ao cabo, até ganhou com isso: o facto de nas aulas descodificar narrativas e poemas, de analisar escritas mil, não só acrescentou o meu grau de exigência em relação aos meus textos como me trouxe um acréscimo de agilidade. Mas a evolução das minhas ficções processou-se essencialmente na direção intima do onírico e do poético, sem prejuízo da permanente atenção ao social, que me acompanha desde o início.
Nunca escrevi romances de herói coletivo, mas tenho a consciência de haver feito a crónica da vida privada de muitas décadas da segunda metade do séc. XX. Não concebo o ser humano senão em relação com os outros.
Estou a falar muito de livros afinal porque a minha existência é cada vez mais isso: os livros que leio, os livros que escrevo. Não o constato sem melancolia. Vivo para a Ana Maria, que é hoje a luz da minha existência. Ainda dou aulas, relativamente poucas. O contacto com os alunos, a descoberta que por vezes faço dos seus universos, a carga afetiva que daí decorre são importantes para mim. Sempre o foram. Atrevo-me a pensar que contribuí para a formação de alguns, estética, intelectual e até política. Olho às vezes para trás e já não me revejo em muitos dos meus atos, na facilidade com que colhia flores e sorrisos, corpos e almas, sem pensar nas consequências de umas horas, ou meses, de ternura e prazer partilhado. Também já não me reconheço na inconsciência (ou falta de imaginação) com que desafiava por vezes todos os riscos. Mantenho a mesma visão do mundo. Não aceito sem revolta uma sociedade onde se possa desistir do pleno emprego, da assistência social, das reformas a sério, da educação para todos, da conquista da felicidade, um mundo igualitário verdadeiramente livre. Virá ainda? Não virá? Nunca deixarei de lutar por ele no espaço em que continuo a mover-me.