A monumental biografia de Tiago Veiga – o desconhecido poeta novecentista revelado pela prévia edição, levada igualmente a cabo pelo escritor Mário Cláudio, de duas colectâneas de poemas inéditos, Os Sonetos Italianos (2005) e Do Espelho de Vénus (2010), este último precedido de um longo e esclarecedor estudo de José Carlos Seabra Pereira – lê-se, segundo a frase consagrada, como um romance, ao mesmo tempo que nos confronta com a própria dimensão do livro enquanto tema e problema. Com efeito, as 800 páginas da biografia, incluindo notas, anexos, bibliografia e índice onomástico, não só se lêem a correr, como fazem da sua extensão um dos maiores atractivos do livro, ao suspender-nos de cada página que se segue e ao usar da dimensão para nos transmitir, como raramente acontece em literatura, a passagem do tempo – um século desde finais do XIX aos do XX.
Outra propriedade rara deste livro é a de confirmar a dupla ideia de que todas as ficções têm algo, senão muito, de biográfico, assim como as biografias, incluindo as auto-biografias, e se calhar sobretudo estas, têm algo, se não muito, de ficcional, maximamente quando biógrafo e biografado fazem parte da mesma dialéctica, conforme acontece no livro dedicado por Mário Cláudio à vida de Tiago Veiga: “… uma vez mais dir-se-ia apostado o destino em pôr a coincidir o itinerário dele [Tiago] com o do autor da presente biografia” (p.609).
E não só a partir do último tríptico em que o livro está dividido, “O Sono e o Mundo”, a páginas 480 e tal, quando Tiago Veiga entra na vida mental de Mário Cláudio, nos idos de Novembro de 1960, por indicação de outro Mário – Sottomayor Cardia, testemunha infelizmente já desaparecida, – a não ser, claro, que tenha sido Mário Cláudio quem, então ou um pouco mais tarde, em Janeiro de 1962, entrou na vida de Tiago Veiga para fazer deste quem ele é hoje e será para sempre: um irmão muito mais velho do biógrafo ou simplesmente um avô que Mário Cláudio inventou para si…
Em suma, uma espécie de heterónimo, daqueles em que era pródigo o “génio da lâmpada”, como o autor crismou o líder carismático do movimento d’Orpheu: só que nem Fernando-Pessoa-ele-próprio se dera à tarefa de biografar tão extensamente e de interagir pessoalmente com Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos ou Ricardo Reis, ou ainda Bernardo Soares, deixando portanto perdurar uma insanável indistinção entre ele-mesmo e os ditos heterónimos…
Aqui não. Não é isso que se passa. Mário Cláudio faz questão em se distinguir claramente de Tiago Veiga, e não só distinguir-se como, frequentemente, distanciar-se dele e até aborrecer-se com as “manobras” do Tiago para instituir o Mário em seu “discípulo”, segundo as próprias palavras do biógrafo; institui-lo talvez naquele poeta que o prosador Mário Cláudio aparentemente não é, apesar ou pour cause de aqui fazer, neste livro, o mais desarmante estendal, simultaneamente sensível e astucioso, da poesia portuguesa do século XX, desde Pessoa ao saudoso Luís Miguel Nava, entre outras preferências, semi-preferências e manifestas des-preferências, em todo o caso, sem menção de qualquer prosador de renome à excepção de Manuel Teixeira Gomes, que desempenha na biografia um papel um pouco parecido com aquele que Tiago Veiga terá tido na vida de Mário Cláudio…
E não só da poesia portuguesa mas também da internacional, sobretudo de língua inglesa e italiana, como Eliot e Montale, que depois de Álvaro de Campos dar o mote para o primeiro tríptico do livro (“A Cela e a Vida”), fornecem as epígrafes para o segundo (“Alhos e Safiras”) e o terceiro (já citado) trípticos. Não possível, porém, entrar em todos pormenores de uma biografia de cem anos. Que fique dito, em todo o caso, que o vasto painel da vida de Tiago Veiga também é, além de muitas outras coisas igualmente bem-feitas, uma espécie de Catalogue Raisonné das leituras poéticas de um prosador chamado Mário Cláudio, catálogo esse que de muito servirá à ilustração dos leitores do livro.
O biógrafo diferencia-se pois, claramente, do biografado, que deixa portanto de ser um “simples heterónimo” para adquirir vida própria, por vezes até de maneira impertinente. Ao mesmo tempo, contudo, o biógrafo vai interagir com o biografado tão estreitamente que não se livra do “assédio” – a palavra é mais uma vez de Mário Cláudio – que Tiago Veiga lhe faz, a determinada altura da sua então já longa existência, no “último dia dos santos” com que se inicia a marcha para o final do livro, “assédio”, dizia eu, no sentido de o nosso autor lhe escrever a biografia. E logo o previne: “É claro que irão acusar-te de me teres inventado, considerando-se muito argutos pela descoberta, mas não será verdade que cada biógrafo inventa o seu biografado, e que andamos todos nós a inventar-nos uns aos outros?” (pág. 650).
Mário Cláudio vai ainda debater-se contra o assédio mas, como costuma acontecer nestes casos, acaba por ceder, quase 60 páginas depois, entrando numa espécie de fusão entre biógrafo e biografado, ao parecer-lhe descortinar o velho poeta num hotel em Santa Margherita Ligure na Riviera Genovesa, onde o autor desta resenha também por lá passou num Fiat 127 alugado, no rescaldo dos acontecimentos de Maio de 1968, com uns amigos norte-americanos de origem judaica em busca da revolução perdida, a provar que a vida se repete sempre de modo diferente:
“Descortinei o nosso poeta, um pouco recurvo, mas impecável no casaco de linho branco. Não era porém Tiago Veiga quem ali progredia a custo, mas eu próprio, em busca de uma sílaba, de uma palavra e de uma linha, de um livro como este que os vermes hão-de comer” (p. 708).
Dispersei-me um pouco atrás das inúmeras pistas do livro, mas não perdi fio à meada. Outra dimensão que esta biografia convoca é, obviamente, a da história e análise da sociedade portuguesa ao longo do século XX, do fim da Monarquia à República e desta à Ditadura Militar; e por sua vez, desta à interminável ditadura do Estado Novo, com a sua opressão sistemática, a sua cultura bafienta e as suas oposições divididas; até finalmente ao 25 de Abril e, para terminar, uma democracia que já deixava algo a desejar em 1988, quando o biografado põe termo aos seus dias num derradeiro gesto para coroar a sua obra inconclusiva e desarmar assim o resto do mundo.
São esses sucessivos contextos nacionais, , que o seu biógrafo descreve melhor do que ninguém e aos quais Tiago Veiga fugiu o mais que pôde, procurando lá fora, em importantes e repetidas projecções internacionais mas sem alarde excessivo, aquilo que não encontrava cá dentro. É um tropo da nossa existência colectiva a que não há como fugir mas no qual Mário Cláudio, inteligentemente, não insiste, limitando-se a colocá-lo como pano de fundo, pois já não se justificam acerca dele demasiados comentários, nem num sentido nem no 0utro.
Mais do que própria evolução histórica e os múltiplos contextos sociais em que viventes e fantasmas entram e saem de cena, delineados com mão de mestre por Mário Cláudio, o que fascina é a passagem do tempo – ora lenta, ora acelerada – que o autor nos faz sentir sem apelo, com um peso cada vez maior à medida que os anos passam e a vida de Tiago Veiga se enreda nela própria sem saída aparente.
De todos os lugares onde o pai e ele nos levam, desde a Casa dos Anjos – em Venade, Paredes de Coura – no final do século XIX de regresso à mesma Casa dos Anjos no final do século XX, passando por Irajá, Rio de Janeiro; Paris; Londres; a Guiné; a Itália; a Irlanda; os Estados Unidos; e curiosamente mais Lisboa – fútil e sórdida tantas vezes, mas a nossa única capital – do que o Porto, onde no entanto acaba por ficar só aquela, a única, que verdadeiramente amou Tiago Veiga e pela qual este, como era fatal nestes casos, passou por vinha vindimada sem se dar conta disso!
Em resumo, está tudo tão bem feito neste livro que me atrevo a dizer que, dos personagens históricos e dos putativos, se assim me posso exprimir, não sei – ou melhor: sei mas não posso dizer – quais aqueles que soam mais autênticos, admitindo aliás que somos capazes de os distinguir, pois não é certo que, para o Português médio de hoje em dia, os personagens históricos dos presidentes da República Bernardino Machado e Teixeira Gomes não sejam tão imaginários ou mais do que os actores que se afrontaram na cena literária nacional durante a vida de Tiago Veiga.
E de todos os lugares e países evocados, confesso que aquele que mais me impressionou – pela forma como Mário Cláudio o descreve e ao qual retorna, sempre que o ritmo abranda, como para reencontrar uma raiz qualquer – é a casa solarenga da aldeia, cujas pedras de granito e cujas sombras húmidas chegam a arrepiar de fantasmagóricas. Suspeito, com efeito, que a Casa dos Anjos e Venade acabem por ser, para Tiago Veiga, mais do que emissores seculares de vagas sucessivas de emigrantes, uma espécie de funil – o equivalente do mäelstrom de Edgar Allan Poe – que absorve e deglute, escatologicamente, todas as veleidades cosmopolitas pelas quais ele, mas nós também, fomos e continuamos a ser tentados.
Seja como for. Mais importante ainda do que isso é, para mim, que os lugares e as épocas, até certo ponto intercambiáveis, percorridos pela biografia se tenham transmutado, por obra e graça da escrita, em TEMPO, em decursus, desde o despertar do infante algo infausto Inácio Manuel, pai de Tiago, até ao sono premonitório – ante-câmara queiroziana da morte, evocada por Eugenio Montale na exergue do tríptico final – em que o nosso biografado mergulha “senza preavviso”. Subvertendo as palavras do poeta italiano, Tiago vai-se convencendo de que “lá fora nada acontece que demonstre que o mundo existe e que os chamados vivos não estão todos mortos” (p. 477), mergulhando assim num “sono incessante” (p. 667) do qual só emergirá para tomar a decisão de o levar ao seu mortal culminar.
Isto para dizer o quê? Que a biografia de Tiago Veiga é não só um livro grande, como é fácil de ver, mas também um grande livro, um deliberado exercício de homenagem à literatura em tempos de actualidade devorante. Com efeito, a sua efectiva extensão não é mero tamanho, mas sim o modo exacto de transmitir a medida do tempo, do despertar ao sono que se apodera da idade para a encaminhar desta para outra. Nunca talvez se tenha visto, como neste livro, alguém envelhecer e morrer sob os nossos olhos, dia a dia, de forma ao mesmo tempo tão imperceptível e, afinal, tão evidente e fatal.
Dito isto, se a obra é afinal leve e saltamos por ela ansiosos por conhecer o que a página seguinte nos reserva, cada página é pesada, como a pálpebra que se descerra até à pálpebra que se fecha: sempre a mesma pessoa – Tiago Veiga, Mário Cláudio ou nós próprios – e todavia sempre outra: accionada por um mecanismo da memória que lá do fundo das 700 e tal páginas faz ressuscitar as almas sepultadas no tempo. Este é um dos principais conseguimentos do autor: fazer-nos sentir, através da dimensão temporal incorporada na massa das frases, páginas e capítulos do livro, o peso próprio da interioridade reflexiva, de uma recomeçada reflexão sobre a reflexão que reflecte, por seu turno, sobre a reflexão, e que toma como sua matéria principal, não tanto a vida empírica tal como ela nos a-parece fenomenologicamente, mas sim a literatura, aliás a poesia, a música e a arte, em suma, a criação, ou seja, o processo criativo que o autor melhor do que ninguém conhece.
Os exemplos disto são tantos quantos quisermos. Uma ilustração de que a literatura é, deve ser e é, seguramente, para Mário Cláudio, uma forma – porventura, a forma por excelência – do conhecimento existencialmente interiorizado e praticamente incorporado, reside no recurso do autor a um dos poucos prosadores invocados no livro, Robert Musil, para explicar, por assim dizer, o modo como Tiago Veiga antecipa a sua própria morte:
“Tudo o que sentimos e fazemos acontece de algum modo “no sentido da vida” e o mínimo movimento de desvio torna-se difícil ou assustador. É já isso que se passa com o simples acto de andar: erguemos o centro de gravidade, impelimo-lo para diante e deixamo-lo cair. Mas basta uma mudança ínfima, um mínimo receio deste deixar-se-cair-no-fundo ou apenas o espanto por isso… e já não conseguimos manter-nos de pé”! (pp. 687-688).
Foi exactamente o que aconteceu com Tiago Veiga no mosteiro galego de Oseira, numa metafórica demonstração da literatura não como trivial rosário de citações, mas como projecção de nova e mais literatura; da escrita não pela escrita, mas por ser escrita e ressoar, musical e cognitivamente, por nós adentro, como sucede nesta obra invulgar!