Editada pela Ulisseia, a obra parte das memórias da autora ligadas à infância no Douro, o que se reflete não só nos episódios narrados, os quais ouvia ao serão, como também no seu retrato desse lugar, que, simultaneamente, amava e temia.
Filha de Agustina Bessa-Luís, Mónica Baldaque, 65 anos, é licenciada em Pintura pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. Foi conservadora dos Museus Municipais do Porto e diretora dos Museus Nacionais da Literatura e de Soares dos Reis. É autora de uma vasta obra plástica, na área do retrato, da paisagem e da ilustração, e dos títulos infantojuvenis Do Outro Lado do Quadro, A Folha do Limoeiro e Pequeno Alberto, o Pensador.
JL: Como surgiram estes contos?
Mónica Baldaque: Pertenço a uma família contadora de histórias e, neste livro, retomo toda a toada das histórias que ouvia ao serão, de coisas que se passavam no Douro. Eram narrativas muito interrompidas, com coisas subentendidas, suspensas, que correspondiam justamente à zona sombria da vida das pessoas. E isso fascinava-me, porque no ‘pouco dito’ estão sempre as paixões, a violência, a miséria, a crueldade, a vingança, o crime… Aquilo que é tão profundo que se torna difícil de revelar. Portanto, a narradora apresentada no primeiro conto, Marta Carolina, que se instala na casa da família no Douro, depois da morte da avó, com a tarefa de a desfazer, na verdade, sou eu. Foi precisamente nessa situação que comecei a escrever estas histórias.
Há nelas uma unidade temática: a morte. Porquê?
As histórias passam-se quase todas no Douro e, na província, a morte estava sempre presente: todos os dias morria alguém e quase todos os dias havia crimes. Fui habituada a conviver com isso, e gostava. Não tinha medo, porque havia uma relação muito próxima com a morte. Viver e morrer era quase a mesma coisa.
Qual a importância desse lugar no seu processo criativo?
Não é o Douro todo, muito menos o turístico. É o sítio onde nasci, no vale da Régua. Um lugar cheio de força, onde passa o rio, que é um elemento profundamente melancólico e arrasta muito drama e violência. O meu Douro era a casa dos meus avós, onde passava grandes temporadas e me sentia completamente livre. De resto, o elemento ‘casa’ atravessa todos estes contos, assim como os que estou agora a escrever. E essa casa de família teve um peso enorme. Às vezes, sentia medo de lá estar porque toda ela tinha voz, presenças quase físicas… E o fim da tarde era das coisas mais terríveis, mas um horror que gostava de enfrentar. Uma espécie de prova.
Esses novos contos são a continuação destes?
Sim. Embora com um enredo mais complexo, são, à mesma, histórias de crime, e sempre numa abordagem diferente da policial. Trata-se de refletir sobre como o crime pode, de repente, estar presente na vida de qualquer pessoa.
Há uma relação entre a sua escrita e a pintura?
Há pintura no que escrevo e escrita no que pinto. Já pintei os céus do Douro, as ramadas, e, agora, estou a preparar uma série de trabalhos sobre os muros da região. O muro é um elemento fascinante, não só pela sua construção, mas pela ideia do que está para além dele. Essa relação entre o visível e o invisível tem muito a ver com a minha escrita.