Nascido há 61anos, sob o signo do Escorpião, com ascendente em Gémeos não que eu tenha uma ideia clara sobre o que isso significa, mas enfim, fica sempre bem escrevê-lo.
Autobiografia, porquê, para quê? Se as coisas imaginadas tendem a ser muito mais interessantes do que vividas? Ou, pelo menos, é o que se passa comigo. A minha vida não daria um livro; em contrapartida, um livro meu daria uma vida se chata ou interessante, não me compete dizer. Em todo o caso, puxando os cabelos da memória, encontro alguns momentos especiais, daqueles que o tempo não apaga facilmente.
O gânglio (GÂNGLIO) pulmonar: o dr. Cordeiro Ferreira apontando para uma radiografia (a minha radiografia) dizendo: “Cá está”. E a minha mãe respondendo-lhe com um breve ataque de choro, logo contido, porque eu estava presente tinha sete anos, se a memória não me falha. Não que aquilo fosse mortal, mas era (foi), sem dúvida, complicado: um mês inteiro de cama, injecções de cálcio todos os dias (traseiro feito num passador), depois a procura de zonas com ares saudáveis (Alcabideche! Mem Martins! Sem dúvida, uma outra era) e, claro, antes de tudo isso, a saída do jardim de infância onde começara a aprender a leitura pela Cartilha de João de Deus e o francês pela paciência de uma mademoiselle. Abandonado o jardim por ordem médica, o que se há-de fazer com o miúdo, que está proibido de correr, saltar, brincar? É preciso que continue a aprender a ler. Que aprenda rapidamente, de preferência. Depois, é colocar-lhe sobre os joelhos os livros que ele for capaz de consumir.
Estou convencido de que foi assim que tudo começou. Poucos meses depois, nós as minhas duas irmãs e eu esperávamos o dia em que partiríamos com a nossa mãe para Moçambique, onde o nosso pai nos esperava. Eu tinha feito cla-ros progressos na leitura, porém a escrita ainda estava perra. No entanto, isso não me impedira de congeminar uma história (magní.ca, achava eu, mo-destamente), que esperava, dentro da minha cabeça, o momento de saltar cá para fora. E assim, num dia em que os astros me eram par-ticularmente favoráveis, logrei convencer a minha irmã Maria João a aceitar que eu lhe ditasse esse pri-meiro arroubo literário…
Foi um desastre. Eu tinha imaginado, evidentemente, uma linda princesa a quem a fada madrinha oferecera três ovos de ouro que ela deveria quebrar quando es- tivesse em situações de perigo. O problema estava em que acabei por arranjar mais situações do que ovos, de modo que, quando atirei ao caminho da princesa um tigre terrível e sanguinário resolvi o assunto, à falta de ovos, com uma frase que me pareceu magistral: “Como ela era muito habilidosa, conseguiu afastar o tigre”. Ao ouvir isto, a Maria João decidiu que bastava de tontices e, do alto dos seus sábios 12 anos, declarar que a minha história era estúpida e que não escrevia mais nada (na rea-lidade, eu ainda tinha um ovo de reserva mas recusei-me a usá-lo porque precisava dele para acudir à princesa no .nal comovente da história).
Assim vi impossibilitada o início de uma carreira literária precoce.
Um outro momento: largos meses mais tarde, já em Moçambique, retomada a vida escolar, sofri nova desilusão também por via fraternal: con.ado na tremenda maturidade dos meus nove anos, recentemente completados, considerei que era chegada a altura de escrever não um simples conto com princesas, tigres e ovos de ouro, mas antes um livro completo, um romance inteiro. Lancei-me ao trabalho, já sem intermediários: escrevia eu próprio com lápis, porque as canetas, todas elas, tinham o mau costume de me largar tinta na roupa, atitude subversiva que exasperava a minha mãe.
Lembro-me de que a primeira tentativa romanesca começava assim: “Sangue! Vingança!”. Já não sei que personagem pronunciava este rigoroso dis-curso, mas também não importa, porque a per-sonagem não disse mais nada: eu esquecera-me de construir a história previamente e não sabia como havia de continuar. Portanto, desisti. Mas não me desencorajei; comecei logo um outro romance e, ao chegar à terceira página, achei que tão prolongado esforço merecia já um claro aplauso familiar. Submeti o original ao parecer dos meus pais e dos meus ir-mãos.
A família leu o original. O que, admita-se, já foi muito meritório. Faltava, porém, a parte do claro aplauso e esse foi, como direi, mati-zado. A minha mãe disse: “Bom. E, a propósito, já .zestes os trabalhos de casa para amanhã?” O meu pai limpou os óculos e murmurou: “Pois. Muito bem.” Então, desiludido com a geração mais antiga, virei-me para a geração seguinte, mais capaz, cer-tamente, de entender os novíssimos. A Maria João olhava de relance para a nossa irmã mais velha, Manuela. E esta, enchendo-se de coragem, falou. Olha, João (disse ela), o que se passa é que tu não tens andado a ler os livros certos. Tens de ler livros bons, entendes? Quando tiveres lido Júlio Dinis, Alexandre Herculano e … (mencionou mais uns quantos que não me recordo; certamente, Eça de Queirós), então, talvez possas pensar em escrever um livro.
Detestei um tal conselho com toda a força com que é normal, naquela e noutras idades, detestar os bons conselhos. E senti-me incompreendido, o que, como se sabe, é o primeiro passo para a condição de génio.
Passou tempo, muito tempo. Aos 14, aos 15, e 16 anos, escrevi peças de teatro. Tinham caracterís-ticas que eram comuns a todas: primeiro eram tragédias pungentes (duas mesmo tragédias gre-gas, imagine-se, com a acção situada na Grécia antiga e mitológica); e, segunda característica, o protagonista era sempre um rapaz de 14, 15, ou 16 anos, conforme a idade que eu tivesse na altura. Com pleno de Shakespeare: querer ser autor actor. As obras não seriam propriamente geniais, porém demonstravam, muito helenicamente, a interfe-rência do destino: as minhas notas a matemática eram desastrosas. E depois, momento subsequente, vieram as tentativas de produzir romances. Foram várias e poucas passaram da fase do manuscrito à da dactilogra.a. Um desses romances cheirava indecentemente a Doutor Jivago. Eu lera o livro de Pasternak aos 16 anos, justamente. E lera-o, apesar das 600 e tal páginas da tradução portuguesa, em escassos 15 dias, saboreando cada página com in-tensa volúpia. Fizera-o não por maturidade precoce, mas porque a minha mãe pronunciara as palavras mágicas: “O menino ainda não pode ler esse livro, não é próprio para a sua idade”. Com a mesmíssima frase me levara ela a decorar A Túnica (de Lloyd C. Douglas, se não estou em erro), quando eu tinha dez anos. Seria, nos dois casos, propositado? Ainda hoje não sei. Mas sei que não há nada, não há delícia terrena comparável ao gosto e ao perfume de um livro proibido.
Passemos. Após uns quantos inesquecíveis “romances” (que já esqueci), naufragados em outros tantos cestos de papéis, e sendo eu já um jornalista jovem e prometedor (interpretação minha, evidentemente), veio o momento em que, bebendo da minha experiência vivida, escrevi um verdadeiro romance, sem aspas. E mais: auxiliado por um amigo, arranjei uma editora. Revivo ainda, na memória, a emoção de tirar com as minhas mãos as primeiras provas. Momento único na vida de um futuro escritor…
Então, a editora faliu e o livro não foi publicado.
Quem leu isto, pensará: lá está ele a querer fazer-se valer a querer mostrar como teve de lutar contra inúmeras di.culdades e resistências para concre-tizar o desejo de ser escritor! Engano. Não é nada disso e é, digamos, muito pelo contrário… Todos estes momentos de não-glória me foram muitíssimo úteis. Por exemplo: eu lamento a falência da editora que ia publicar-me, lamento-a só por ela, editora, e não por mim. O livro era mau. O facto de ser um romance sem aspas nada altera; eu ainda estava demasiado verde.
Da mesma forma, a proibição de ler O Doutro Jivago abriu-me as portas da literatura russa. As críticas fraternais que sobre mim desabaram na tenra idade dos nove anos travaram os meus ím-petos durante o tempo necessário para educar mi-nimamente o meu gosto e aprender um português escorreito. A também fraternal recusa de pôr por escrito a história da princesa e do tigre dos ovos de ouro ter-me-á dado, suspeito eu, uma primeira ensaboadela sobre as exigências da lógica e da .exibilidade na construção de uma trama. E até o gânglio pulmonar colaborou, ao pôr-me a XXX mais cedo do que seria normal.
Está claro, eu podia narrar outros momentos. Mas, recordo, a minha vida não dava um livro, e ainda bem. Em compensação, o facto de os meus livros darem uma vida boa ou má, não importa para o caso -, esse facto, devo-o, em grande parte, aos momentos de não-glória que acabo de relatar. E estou-lhes muito grato.