Apanhou-o em cheio a crua história de uma ordem de monjas do século XIX que para expiar os pecados mortificavam a carne não com silícios, mas entregando o corpo ao inferno, deitando-se com velhos, doentes e andrajosos, aqueles a quem até as prostitutas recusavam. Relia Alexandra Alfa, de José Cardoso Pires, quando deu com a alusão a essas “freiras desnudas” que lhe tinha passado despercebida na primeira leitura. “Descobre-se sempre muito mais quando se relê um livro”, afiança ele. Contactou a revista alemã Der Spigel, a que se referia o romance de Cardoso Pires e conseguiu o artigo, em que buscou mais pormenores. A história interessou literariamente a Rui Vieira, até porque a ideia de vocação há muito que lhe assaltava o espírito e queria ser matéria de um livro. E foi. Vozes no escuro (edições Nelson de Matos), diz do que vai dentro de um convento, duas vezes devastado por um incêndio, e da alma de uma noviça, enclausurada numa cela para expiação. Numa trama narrativa complexa cruzam-se destinos femininos e a história das tais monjas, que o escritor deslocou para o século XV, com esteio nos quatro elementos – fogo, água, terra e ar. Uma estrutura que potencia as ideias de pecado e purificação, culpa e redenção, que atravessam o romance, que não procura, mas também não evita o território da religião. “Gosto de histórias que se passam dentro da cabeça das pessoas e a vocação é nesse sentido um tema sem limites”, justifica.
A vocação de Rui Vieira é a frase. Mais do que contar uma história, quer escrevê-la, o que não é de todo a mesma coisa. Conhece o prazer dessa diferença, sempre que se senta para escrever, sempre noite dentro, sempre à mão, sempre com uma caneta de aparo e tinta permanente sobre as folhas de papel branco. O gesto pode já parecer arcaico, mas Rui Vieira explica-o pela natureza da sua própria escrita. É que escreve parágrafo a parágrafo e relê tudo, uma e outra vez, sempre que recomeça a escrita. Às tantas, vai sobrepondo notas sobre notas à margem, remissões, setas, rabiscos e sinaléticas várias. E gosta de o fazer sobre o papel. Só quando um capítulo fica pronto, o passa a limpo ao computador. Paralelamente, vai acompanhando a escrita num caderno à parte, onde aponta ideias, hipóteses para resolver um ou outro problema que a narrativa impõe ou mesmo, numa fase inicial, o desenho do próprio romance. A “espinha dorsal” da narrativa é para ele fundamental. “Quando começo um romance, sei sempre qual será o fim”, garante. “Pelo caminho, deixo correr a narrativa, as personagens vão aparecendo, mas a estrutura do texto fica assente no princípio”. É assim demorada a sua escrita. Vozes no escuro foi escrito e reescrito ao longo de mais de dois anos. E é preciso que um livro já esteja a caminhar para o seu fim para subitamente se insinuar a história de outro. Rui Vieira está, desde Agosto, a escrever um novo romance, no “labirinto do Centauro”, como ironiza. Desta vez, será um thriller, em torno de um psicopata, que já lhe deu para ler muito tratado de psiquiatria.
Rui Vieira, 43 anos, não é daqueles que declaram que sempre quiseram ser escritores desde pequeninos. E se é justamente “de pequenino que se torce o destino”, como canta Sérgio Godinho, ele não dá crédito a tais manifestações de precocidade literária. Ele simplesmente queria ser cientista, ainda que caprichasse nas redacções e que se aplicasse na leitura, “devorando” As aventuras de Sandokan, de Emílio Salgari, ou de Os Cinco, de Enid Blyton. Também nunca foi dos que começam a ler Eça ou Homero aos cinco anos. Cada leitura no seu tempo. O cheiro dos livros impregnou-lhe, porém, a infância, já que a mãe trabalhava num alfarrabista. Os pais – a mãe, uma ‘torguiana’, o pai um ‘aquiliniano’ – ainda são alfarrabistas, com uma livraria, Vieira de seu nome, na Rua das Oliveiras, no Porto.
Não foi em vão que encheu os pulmões dessa atmosfera livresca, uma poalha antiga de papel e palavras que lhe ficou em depósito nalgum bocado de alma ou de cérebro, onde se sedimenta a escrita. E, no fundo, Rui Vieira sabia que um dia seria escritor. Era uma questão de tempo ou, como adianta, de “maturação” do próprio processo da Literatura. Já andava na casa dos 30 e levava umas largas centenas de livros lidos, quando se sentou à secretária e começou a pôr a sua escrita em dia. Tinha feito o curso de Engenharia, trabalhou numa fábrica do sector energético, antes de mudar para o ramo dos serviços, sendo hoje director da banca. Não tinha esperado sentado. Escreveu uma primeira história, a que deu um nome, Milénio, e um destino, o caixote do lixo. Não ficara satisfeito, mas deu a si próprio uma segunda oportunidade. A escrita já se tinha tornado uma coisa “séria”. E escreveu Guardador de almas, com que se estreou em 2005. A seguir, publicaria A eternidade noutra noite e recentemente saiu o terceiro romance, Vozes no escuro. Não os une uma temática, nem parecem indiciar preocupações recorrentes. O que há neles de comum é a própria escrita: “A fragmentação, os parágrafos, a pontuação”. São marcas diferenciadoras e reveladoras de um “perfeccionista” confesso. “Gosto de pôr vários tempos no mesmo parágrafo. E, por outro lado, os parágrafos aparecem recuados. Desde muito miúdo que me esquecia sempre dos travessões no discurso directo e como os meus últimos livros são escritos na primeira pessoa e essa foi a forma que encontrei de o assinalar, como se fosse um atropelo da personagem sobre si mesma”, adianta. “Não me agrada chamar-lhe um estilo, mas tento manter essas marcas. E procuro sempre uma construção da frase que permita passar de uma personagem para outra, sem ter que fazer pontuação. Gosto de misturar tudo”. Contra a corrente, Rui Vieira é dos que não querem facilitar a vida ao leitor, mas dar-lhe algum trabalho. “A minha preocupação é desafiar quem lê”, afirma. E puxando os seus galões de leitor, acrescenta: “Quando leio, gosto de aprender e que o livro me prenda não pela história, mas pela forma como a conta”. Vozes no escuro tem 230 páginas. Outro dia, dois colegas do escritor conversavam sobre o livro e um deles, irónico, disse-lhe: “Ainda bem que são só 200, se fossem 500, nunca mais acabava de o ler, porque tenho que andar sempre para trás e para a frente”. É nesse ziguezaguear entre páginas que se vê a arte de ler. A de escrever, no caso, é frase a frase.
Um parágrafo do novo romance de Rui Vieira:
“Resta-me morrer: reencarnar o Centauro que sempre fui, correr livre até às montanhas de Tessália, saciar-me com a carne que as minhas mãos dilaceraram, vingar-me dos homens que me encurralaram sem perceberem a minha dor, vingar-me destes Lápitas que em nome do Bem e da civilização me mantêm neste labirinto de vida errante”.