Qualquer coisa de western havia de acudir ao espírito de quem o visse, solitário, seguindo a linha férrea, as botas arrastando poeiras e resíduos das chulipas, os olhos semicerrados de luz e paisagem a perder de vista. Foram 54 quilómetros, todos palmilhados a pé, sempre seguindo o caminho por onde já não passam comboios. Aqui e ali, a tropeçar nalguma pedra ou nas ervas rasteiras que já vencem o destino desbravado pelo ferro dos carris. Três dias e por certo um par de botas ou bem podiam ser ténis, diga-se em abono da realidade, mesmo que desfavorecendo a metáfora -, sempre a andar pela linha do Tua, de mochila às costas, como é seu hábito, e o olhar a despenhar-se pelo desfiladeiro, cavado do céu ao fundo do tempo. Podia lembrar um cowboy solitário, mas não era nem um caminheiro daqueles que agora põem pés ao caminho para manter a forma física e a cultura geral, em comunhão com a Natureza. Era um fotógrafo andarilho, Duarte Belo, que já gastou muitas solas, percorrendo o país de Norte a Sul, de Este a Oeste, fazendo da sua máquina fotográfica a única bússola.
Do Tua até Mirandela e depois até Bragança, fez por certo umas boas centenas de fotografias, que podem constituir o material de um dos seus próximos livros. E ele já tem uma bibliografia invejável. A edição é a vertente mais forte do seu trabalho que assenta em projectos que vai arquitectando. Gosta de livros e de os fazer. Não será de estranhar, já que, como justifica, cresceu no meio deles. Poderá mesmo dizer-se que são uma questão de berço, pois aparte a biblioteca que lhe forrou os dias desde a infância, é filho do poeta Ruy Belo. A poesia de Duarte Belo escreve-se por imagens, ainda que sejam da sua lavra as memórias descritivas que acompanham as suas fotografias, nos livros que faz.
O último que acaba de publicar, Cidade do mais antigo nome, uma edição da Assírio & Alvim, é uma parceria com o poeta cabo-verdiano José Luiz Tavares. O desafio partiu do poeta e Duarte Belo aceitou com entusiasmo fotografar a ilha de Santiago, em Cabo Verde. “Interessa-me muito uma vez que a Cidade Velha foi fundada por portugueses, em 1460, e ainda existem vários elementos de origem portuguesa, como o pelourinho, o que se relaciona com o trabalho que tenho feito cá em Portugal”, adianta. E o que tem feito é um verdadeiro “levantamento do território português”, da paisagem ao povoamento.
Além do “registo documental”, na Cidade Velha, Duarte Belo procurou “uma leitura mais interpretativa do lugar”. Por outras palavras, quis dar a ver o que era menos evidente, traços que “falem da História, do povoamento, da natureza e da forma como é habitado”.
Em certa medida, pesou também o conhecimento dos poemas de José Luiz Tavares sobre a Cidade Velha, ainda que as imagens estejam longe de qualquer intenção ilustrativa. “Gosto de fotografar as coisas pela ‘primeira vez’, mas tendo a preocupação de responder a algumas questões levantadas pelo texto”, diz. Passou uma semana em Santiago e fez à volta de quatro mil fotografias, das quais escolheu as 92 que integram o livro. “A situação da cidade velha, junto ao litoral, o facto de ter uma ribeira com água todo o ano, tornaram muito sedutor fotografar, para tentar captar essa presença, esse contraponto do verde num território muito seco”, adianta. De resto, fotografa sempre compulsivamente, de uma “forma intuitiva” e a selecção das imagens, o “crivo”, como lhe chama, é depois a sua mais árdua tarefa. “Vou fazendo sequências de imagens, neste caso, tendo em conta a relação com os poemas, e a escolha faz-se por etapas”, explica.
Depois de Santiago, Duarte Belo gostaria de fotografar a ilha do Fogo para registar essa “respiração vulcânica da terra”, que tanto o impressionou quando recentemente fez um trabalho sobre o vulcão dos Capelinhos, nos Açores. E seguiria de alguma maneira os passos do geógrafo Orlando Ribeiro – outro andarilho que cartografou Portugal de lés a lés -, cuja obra é para ele inspiradora. Registou em livro aliás a casa do geógrafo e com a sua mulher, igualmente geógrafa, Suzanne Daveau e com o historiador José Mattoso, fez uma série de 14 volumes, O sabor da terra, para o Círculo de Leitores. Com a mesma chancela, publicou uma dúzia de tomos de Portugal Património, um trabalho de fôlego que implicou uma dezena de anos de trabalho, cinco no terreno, outros tantos preparando a edição.
Poucos serão os recantos de Portugal que ainda não esquadrinhou. Mas ainda não se dá por satisfeito. Gostaria, por exemplo de calcorrear o maciço central: Serra da Estrela, Serra do Açor e Serra da Lousã. Por montes e vales, sempre a pé, sempre fora da estrada. É assim que gosta de fotografar. Noutros tempos, fazendo alguns troços com a sua carrinha 4L, um granel de rolos e um rol de mapas e cartas militares na bagagem, acampando tanto quanto possível pelo caminho. Nessas expedições, fez mais de cinco mil rolos de fotografias a preto e branco, ao todo 150 mil imagens que tem agora o propósito de trabalhar, não só por questões arquivísticas, mas porque gostaria de criar um site sobre todos os lugares de Portugal, disponibilizando on line toda a informação que foi reunindo ao correr dos anos.
Enquanto preparava A cidade do mais antigo nome, Duarte Belo desdobrou-se noutro projecto, Comboio de livros, sobre a Biblioteca Nacional, e aventurou-se num novo território: a ilustração de um livro infantil, O príncipe urso doce de laranja, um conto popular da recolha de Leite Vasconcelos. Descobriu assim uma outra faceta enquanto artista plástico. É que fez os bonecos em cartolina, pintou-os e depois fotografou-os: uma “trabalheira”, como reconhece. Valeu-lhe a prática de fazer maquetas, que ganhou no curso de Arquitectura, mas foi bem mais difícil pôr os seus bonecos de pé do que meter-se pelos mais duros caminhos e atalhos, mesmo dos que deram trabalhos. Sobretudo, as figuras humanas deram-lhe que fazer. Já se sabe, o humano é sempre um quebra-cabeças.