Passamos a vida à procura. De nós mesmos, dos outros, dos outros em nós mesmos e de nós mesmos nos outros. Cada qual entra no Mundo e procura. Procura, quanto mais não seja, entendê-lo.
Muitas vezes, porém, deparamo-nos com uma realidade acidentada, aparentemente impossível de entender e privada de sentido. Uma realidade à luz da qual procurarmo-nos, a nós e aos outros, e a nós nos outros, soa a tarefa inglória e inútil.
É também verdade, no entanto, como sublinhou o jesuíta Carlos Carneiro sj, num texto publicado no site Pontosj, a 1 de janeiro de 2025, que “o espírito humano recusa o absurdo e busca um sentido que torne a vida apetecível”.
Quanto ao motor que impele cada um a “perseverar com toda a sobriedade, dia após dia, sem perder o ardor da esperança, num mundo que, por sua natureza, é imperfeito”, este não é igual para todos. Para uns, será a Fé no seu Deus, para outros, a curiosidade, o olhar de alguém, uma melodia, uma imagem, uma ideia, uma memória, um sonho. Em suma, lugares bons.
Num mundo acidentado, onde o progresso é lento, mas o bem se constrói, a Brotéria tem-se dedicado a procurar eutopoi, bons lugares que sejam portadores de esperança. Fá-lo desde 2023, através das Conferências Eutopos, conversas mensais com filósofos, artistas, editores, astrónomos, engenheiros agrónomos e teólogos, entre outros
Ora, para encontrarmos este lugares bons – ou Eutopoi – lugares onde “o bem se constrói e a esperança se torna concreta”, evidentemente é preciso procurá-los.
Não temos de ir muito longe. O JL foi até ao Bairro Alto, mais concretamente até à Brotéria, casa de cultura e diálogo da Companhia de Jesus.
O espaço inaugurado em 2020, sob os princípios da hospitalidade, verdade e beleza, tem dado, desde 2023, uma forma muito específica à busca por lugares bons.
Através das chamadas Conferências Eutopos, conversas mensais com filósofos, artistas, teólogos, escritores, editores, etc., a Brotéria tem mostrado que, ao contrário daquilo que uma análise pouco atenta possa sugerir, a eutopia [neologismo cunhado pela equipa da Brotéria] e a busca pelos lugares onde o bem se revela, é um caminho mais promissor do que a utopia, lugar no qual a revelação do bem é eternamente adiada.
O formato tem gerado tal interesse que, em 2025, continua para o seu terceiro ano consecutivo de programação. E o público continua a acorrer numeroso. Ao início da tarde do dia 18 de janeiro, quando ainda faltavam cerca de 20 minutos para o início da primeira conversa do ano, as três maiores salas do primeiro andar da Brotéria já estavam completamente cheias.
Pessoas de todas as idades dividiam-se entre as cadeiras disponíveis, o chão e os corredores, a fim de ouvir o escritor, tradutor, professor universitário e Prémio Pessoa, Frederico Lourenço (FL), e o padre jesuíta doutorado em Bíblia pela Universidade Hebraica de Jerusalém, Francisco Martins sj (FM), conversarem sobre o tema “Ler a Bíblia, ler o bem do mundo”.
Será a Bíblia, em pleno século XXI, um bom lugar? Um lugar atual, sequer? Serão as suas histórias terreno fértil de inspiração para a vida quotidiana? Fará ainda sentido lê-la, numa era onde, para muitos, a certeza de provas científicas parece oferecer maior conforto que a frágil humanidade da poesia?
Uma obra adversa a absolutos
Em jeito de introdução, e talvez proposta de organização das inquietações enumeradas em cima, a moderadora Madalena Tamen abriu a sessão com as seguintes palavras: “A Bíblia é um texto que é sagrado para uns, sapiencial para outros, fonte de beleza e humanidade, mas também das maiores atrocidades da história”.
Porém, como sublinhou imediatamente de seguida FM, negar ou sublimar, espiritualizando-a, essa faceta do texto bíblico que se prende com a irrazoabilidade divina, “que se transmuta em caprichos e transigências sanguinários, é um ato hermenêuticamente irresponsável e moralmente temerário”.
“Parafraseando Jesus”, continuou o jesuíta, “corre-se o risco de deixar a Bíblia entregue, sem contexto nem aviso, nas mãos dos violentos”.
Ainda assim, o padre sublinhou a importância de não esquecer que “a Bíblia é muito mais que as suas páginas mais negras”, com isto não se referindo à distinção entre Antigo e Novo Testamento, entre um Deus castigador e um Cristo redentor, mas à capacidade de reconhecermos a luz e a sombra em ambos.
“A posse exclusiva da terra, se necessária ao preço de uma violenta e acelerada disposição, é o corolário divinamente sancionado da promessa da Terra
[…] O conflito na Terra Santa já nos fez esquecer que este povo foi capaz de imaginar-se como tal, ainda sem uma Terra”
Francisco Martins sj
Num elenco de exemplos profundamente pertinentes tendo em conta a atual situação política do Mundo, FM recordou que, por exemplo, no Antigo Testamento vemos narradas as histórias do reconhecimento e da conquista da Terra Prometida pelo povo de Israel, mas também a generosidade de Rute, viúva que abdica da sua própria terra a fim acompanhar a sogra de regresso a Israel, tornando-se ela mesma eutopos, ou lugar bom, do que de mais puro alimenta a relação entre dois seres humanos: a empatia.
O jesuíta sublinhou também que, “se lida com atenção, [a Bíblia] revela-se uma obra particularmente adversa aos absolutos”, característica que acredita encerrar um enorme potencial eutópico, sobretudo no tempo histórico que vivemos, marcado por um conflito tantas vezes justificado por interpretações absolutas de textos nela contidos.
“Esta minha afirmação talvez vos surpreenda, uma vez que se trata de um texto de cariz religioso e, como nos ensinam os filósofos, se há domínio do saber onde é pertinente a noção de absoluto é no discurso sobre a divindade”, comentou.
De facto, que potencial eutópico poderá estar latente num livro que conta o passado de “um só povo”, enraizado “numa relação exclusiva, um só Deus, e singularmente orientada”?
É que, como se apressou a explicar, “a reunificação da memória coletiva não eliminou a diversidade subjacente, mas assumiu-a plenamente, transmitindo-se um texto rico não só de contradições e descontinuidades, mas também de ‘contra-memórias’. Isto é, de textos que, cândida mas eficazmente, acabam por sabotar a pretensão de absoluto que certas conceções ou ideias veiculadas na Bíblia parecem reclamar”.
Desta forma, “a tradição corrige os seus próprios sucessos, procurando impedir leituras unívocas, certezas estéreis, perigosos fundamentalismos”.
A aversão que a Bíblia tem aos absolutos, afirmou FM, pode ser ilustrada através de um tema “tragicamente da máxima atualidade”, o da promessa da Terra.
Segundo o jesuíta doutorado em Bíblia pela Universidade Hebraica de Jerusalém, uma leitura atenta do Pentateuco [primeiros cinco livros da Bíblia], por exemplo, permitir-nos-ia identificar facilmente, na sequência de episódios narrados, a sugestão de que “a posse exclusiva da terra, se necessária ao preço de uma violenta e acelerada disposição, é o corolário divinamente sancionado da promessa da Terra”.
Mais, o livro do Êxodo [2º do Pentateuco] dá mesmo a conhecer um povo sem medo de assumir que a sua identidade começou a ser construída fora da Terra.
“O conflito na Terra Santa já nos fez esquecer que este povo foi capaz de imaginar-se como tal, ainda sem uma Terra. Estamos tão convencidos que o povo judeu só existe se tiver a Terra e na Terra, que nem lemos com atenção os textos do Pentateuco, os quais, para o povo judeu, foram a Terra portátil”. Esta é uma leitura que, ao procurarmos eutopoi nos textos bíblicos, “vale a pena recordar, sobretudo na atualidade”.
O perigo das interpretações empoladas
Importa também não esquecer, como referiu durante a sua intervenção Frederico Lourenço (FL), que, ao longo de séculos, não só judeus, mas também católicos recorreram à Bíblia “para justificar atrocidades cujas consequências são ainda hoje visíveis nos problemas com que o Próximo Oriente, a Europa e as Américas se debatem”.
Segundo o responsável pela tradução para português daquela que é considerada a Bíblia na sua forma mais completa [a partir da Bíblia Grega, ou seja, contendo o Novo Testamento e todos os 53 livros do Antigo Testamento grego, em vez dos 39 do cânone protestante, ou dos 46 do cânone católico], o problema fundamental é a forma como a lemos e interpretamos.
“A intolerância, a perseguição religiosa, a escravatura, a opressão das mulheres ou a condenação à morte de homossexuais não são culpa da Bíblia. A culpa está na leitura e na interpretação que se fez, e em alguns contextos ainda se faz, dela”, assegurou FL.
Ou seja, uma vez que as leituras podem ser enviesadas e oportunistas, “é fácil dar a impressão de que a Bíblia diz aquilo que eu quero que ela diga, porque, fundamentalmente, a Bíblia diz muitas coisas, surgindo o risco de o leitor escolher e empolar aquilo que lhe convém”.
Perante tal risco, o professor considera essencial, a fim de poder ser entendida como um eutopos, a Bíblia ser lida com cuidado. Em primeiro lugar, uma vez que a palavra Bíblia significa conjunto de livros, é importante ter “consciência de que estamos a ler muitos livros encadernados como se fossem um só”, escritos ao longo de milhares de anos em dois contextos religiosos muito diferentes, o judaico e o cristão.
“É difícil dizer onde encontramos os textos mais antigos da Bíblia, mas algumas passagens do Antigo Testamento poderão ter sido originalmente compostas mil anos antes do nascimento de Jesus, tendo sido depois sujeitas a adaptações e à integração em contextos novos, diferentes dos originais”, revelou ainda FL.
“Importa perceber que a Bíblia não é um livro escrito no século XVIII, XIX ou XX, é literatura antiga e, na Antiguidade, escrever um livro era recuperar tradições”, acrescentou FM, para quem o grande desafio do livro contemporâneo é precisamente relacionar-se com uma literatura que se fazia de forma diferente.
“Um aspeto que nos escandaliza é que, nessa altura, se um texto é irrelevante, eu nem o copio, mas se for relevante para a minha comunidade, copio-o, atualizo-o, acrescento. Portanto, para quem é crente de uma Bíblia 100% divina, mas que é também 100% humana, seria muito estranho que os autores do Antigo ou do Novo Testamento não escrevessem como escreviam as pessoas daquela altura”.
“O que estamos aqui a convidar-vos a fazer é a ter em conta o aspeto histórico, a compreender que, por muita inspiração divina, estes textos foram escritos por seres humanos num local preciso, com condições concretas. Às vezes, as respostas que nós queremos e não encontramos têm que ver também com isso, e com as limitações humanas”, rematou FL.
Além do cuidado em “informar-nos um pouco sobre a sua História e sobre a história dos textos que a constituem”, ao ler a Bíblia, o tradutor considera fundamental ter presente o facto de nenhum dos seus textos ter sido escrito originalmente em Português.
“Não há ninguém na Bíblia que nos diga palavras tão maravilhosas como as que são atribuídas a Jesus. Eu diria que não há ninguém em nenhum texto humano que lhes chegue perto”
Frederico Lourenço
“Eu próprio sou réu, como toda a gente sabe, do pecado de traduzir a Bíblia. E diria que a maior iluminação que a minha atividade de tradutor me tem trazido é a consciência das limitações da tradução”.
O que acontece é que a maioria das pessoas acaba por ler as Sagradas Escrituras através de traduções incapazes de dar uma imagem exata do texto original, seja o hebraico do Antigo Testamento ou o grego do Novo Testamento.
Um bom exemplo para perceber estas limitações é uma frase do Pai Nosso que foi traduzida para português como “não nos deixeis cair em tentação”. Na sua forma original grega, a passagem seria algo semelhante a “não nos coloqueis numa situação onde possamos ser postos à prova”.
Frederico Lourenço explicou que, em português, pedimos a Deus que nos mantenha longe do pecado, mas, se disséssemos a frase em grego, estaríamos “a pedir para não sermos levados para uma situação em que fôssemos postos à prova, porque não sabemos se teríamos força para superá-la. Pediríamos a Deus para não testar o amor que temos por Ele”.
Apesar de tudo, o tradutor considera que a pergunta “qual é a melhor tradução da Bíblia?”, que lhe é feita bastantes vezes, “é uma pergunta muito ingrata, pois a melhor tradução da Bíblia é ler o original. Se não pode ler o original, seja humilde o suficiente para reconhecer que todas as traduções são tentativas de lhe dar, a si, o original”.
Além disso, acrescenta FM, “a Igreja definiu quais são os livros canónicos, mas nunca definiu qual é o texto canónico. Quem vai à Missa ao Domingo, poderia ter ali uma leitura do texto que fosse uma tradução da Septuaginta [grego], do hebraico, do arménio, do etíope, do siríaco. Todos os textos que na Antiguidade foram utilizados pela Igreja nas diversas línguas, podem ser alternativas para o texto canónico”.
Será a Bíblia um bom lugar?
Perante as ideias que se perdem nas diversas traduções e os milénios que nos separam de algumas histórias da Bíblia, é natural que nos questionemos se, ou quais dos seus livros são capazes de nos inspirar no tempo presente.
“Não tenho dúvida em apontar os quatro Evangelhos do Novo Testamento como os textos que mais inspiração nos podem trazer no tempo presente”, declarou FL ao público que o ouvia na Brotéria.
“Independentemente da leitura que queiramos fazer de Jesus – perfeito apocalíptico, rabino revolucionário, ativista progressivo, filho de Deus, Deus – estes são os textos onde encontramos as palavras que podem tornar o Mundo melhor. Não há ninguém na Bíblia que nos diga palavras tão maravilhosas como as que são atribuídas a Jesus. Eu diria que não há ninguém em nenhum texto humano que lhes chegue perto”, acrescentou o tradutor.
Vale a pena recordar que, apesar de ser muitas vezes quase ignorado, o verdadeiro cerne da mensagem de Cristo prende-se apenas com um simples pedido: Fazei o bem.
“Se todas as pessoas pusessem em prática esta palavra, o mundo seria um bom lugar”, defendeu FL, até porque, como reiterou a poucos minutos de terminar a sua intervenção, apesar de nem sempre ter sido respeitada pelos seus leitores, a mensagem da Bíblia “consiste em amar Deus e amar o próximo. E com isto chega a ideia da Bíblia como bom lugar”.
Próximas Conferências Eutopos
Liderar a partir do interior: a herança da Casa de Mateus
Com Teresa Albuquerque, diretora-delegada da Fundação da Casa de Mateus
13 fev, 19h-20h30
Será o Parlamento um bom lugar para construir o Bem Comum?
Com Ana Rita Bessa, CEO da LeYa, e José Manuel Pureza, ex-deputado do Bloco de Esquerda na Assembleia da República e um dos quatro vice-presidentes desta
13 mar, 19h-20h30