Ana Cristina Silva sempre se interessou pelo poder e pela forma como figuras centrais ou mais das margens o conquistaram e exerceram.
Foi por isso sem surpresa que chegou ao Marquês de Pombal, com quem lutou durante dois anos para lhe traçar um perfil ficcionado, num romance biográfico, El-rei Nosso Senhor, Sebastião José, como não se publicava há muito tempo (o último, segundo apurou, é do século XIX).
Numa terceira pessoa que simula a primeira de um narcísico, a escritora acompanha a vida do secretário de Estado do Reino de D. José I, desde o Terramoto à sua destituição.
Formada em psicologia e especialista em aquisição da literacia, Ana Cristina Silva, 59 anos, estreou-se literariamente, em 2002, com Mariana, Todas as Cartas.
Desde então publicou dezena e meia de romances, como Bela, Cartas Vermelhas, A Segunda Morte de Ana Carenina, As Longas Noites de Caxias ou À Procura da Manhã Clara. Com Rei do Monte Brasil recebeu o Prémio Urbano Tavares Rodrigues e, com A Noite não é Eterna, o Prémio Fernando Namora.
O que a seduziu na figura do Marquês de Pombal?
O poder. Tanto a sua conquista, como a sua manutenção. E a figura do narcisista que lhe é subjacente. O Marquês de Pombal era uma pessoa encantadora, bem-apessoada, sabia fazer rir as damas ou os embaixadores estrangeiros. Mas debaixo dessa aparência de encanto infiltrava-se um ressentimento e a necessidade de corrigir a vida do fidalgote.
Foi de tudo isso que surgiu a necessidade de controlar e de punir quem ousasse enfrentá-lo. Também é muito interessante perceber como usou a propaganda ou como foi capaz de manipular a realidade a seu favor.
Uma figura muito atual…
Sim, totalmente. Veja-se o exemplo da propaganda que fez contra os Jesuítas e como espalhou factos reais e outros menos reais pelas cortes europeias… É fácil imaginar o Marquês de Pombal, hoje, a usar as redes socais. Além disso, nos seus escritos, preocupou-se em defender a forma como iria ser visto no futuro, nomeadamente a partir do final da vida, da sua destituição e do seu “exílio” em Pombal.
Tentou um retrato psicológico mais aprofundado, face a outras abordagens que já foram publicadas sobre o Marquês de Pombal?
Segundo apurei, não havia um romance sobre o Marquês de Pombal desde o século XIX. E este é um romance biográfico. Não faltam biografias, incluindo a da Agustina Bessa-Luís, que também se insere nesse registo. Espero que os factos sejam o mais precisos possível do ponto de vista histórico, pois há imensas fontes, algumas contraditórias. Mas o ponto de partida é a sua personalidade, a tal dimensão narcísica, na procura de chegar à interioridade do Marquês de Pombal.
É inevitável, num relato biográfico sobre o Marquês de Pombal, começar pelo Terramoto de 1755?
Num certo sentido, sim. Comecei pelo Terramoto por duas razões. É um marco no país, mas também na ascensão ao poder do Marquês de Pombal. É a partir de 1750 que ele faz um conjunto de manobras para se ir apropriando de parcelas do poder, nomeadamente as que eram exercidas pelo primeiro secretário do Reino, o Pedro Mota da Silva. A segunda razão é a mais conhecida: com o Terramoto e até à morte de D. José ele tem, efetivamente, o controlo do governo e do país.
Ao longo da escrita do romance partilhou nas redes socais a relação difícil que estava a ter com o Marquês de Pombal. Foi de amor e ódio?
Talvez mais de fascínio e repulsa, o que pode dar no mesmo [risos]. O Marquês de Pombal era um homem extraordinariamente inteligente. Todo o seu percurso é fascinante, digno de um discípulo do mestre Maquiavel. São redes de manipulação e círculos de lealdade, suportadas em muitos favores pessoais. Mas, ao mesmo tempo, há uma crueldade extrema, um poder exercido através do medo.
Os seus romances têm sempre uma forte componente de investigação. É uma dimensão que a estimula para a escrita?
Sou, por formação profissional, investigadora na área da aquisição da leitura. Tenho prática de ir às fontes e de selecionar o mais relevante. Mas é apenas uma dimensão necessária: o que mais de estimula é a escrita e montar o ‘puzzle’. Neste caso, era importante encontrar a linguagem certa, nem totalmente da época, nem totalmente atual. Foi o romance mais difícil que escrevi.
Porquê?
Pela contradições das fontes (não há certezas em relação ao sítio nasceu), mas também pela violência de algumas partes, como a morte dos Távoras e do Padre Malagrida. Foi um longo processo entrar dentro desta personagem, da sua voz, e chegar a esta terceira pessoa que é uma primeira pessoa dentro da lógica narcísica.
Em que sentido?
Há a mesma ambiguidade que encontramos em Trump, que quando se refere ao seu processo em tribunal diz: “Este juiz não gosta do Trump”. Inspirado por ele, criei esta terceira pessoa que se confunde com a primeira. E que me permitiu pensar pela cabeça do Marquês de Pombal.