Não há muitos meses, numa entrevista ao Expresso sobre a pandemia (sim, às vezes pensam que sou ‘tudólogo’). fiz uma afirmação usada pelo jornal em título: Se a esperança nos faltar, estamos tramados.
Em intervenções públicas tenho defendido a modernidade como a tábua de esperança e salvação que nos resta, apesar das críticas veementes dos pós-modernistas e dos vaticínios sombrios de pensadores como John Gray. Não vou repetir-me aqui, mas apenas frisar que, a menos que voltemos ao universo medieval e nos fechemos como no mundo muçulmano fundamentalista, ou aceitemos o modelo chinês contemporâneo de um capitalismo comunista de Estado, estamos condenados a nos confrontarmos com um mundo plural e cada vez mais diversificado, onde há que coordenar um mínimo de harmonização dos valores, por mais em conflito que estejam, de modo a não transformarmos a vida em sociedade numa selva descontrolada.
Se não, vejamos: um dos axiomas da modernidade é o da perfetibilidade dos seres humanos, que inclui como corolário a ideia de progresso. Se a educação de cada ser humano tem de começar do zero ao nascer e se as sociedades não estão pré-determinadamente inseridas numa dinâmica evolutiva para melhor, e nem sequer a própria história caminha numa espiral ascendente, então o que nos resta?
Hegel foi ainda mais otimista do que Leibniz. Para ele, o melhor dos mundos era a Prússia do seu tempo. A Luz que tivera origem no Oriente caminhara elevando-se para o seu ponto mais alto no universo germânico, a terra onde Kant, Beethoven e Goethe atingiram os píncaros das possibilidades humanas. Mas o cetro do crescimento evadiu-se afinal para a Inglaterra, e depois para os EUA. Aí, Fukuyama à sua maneira repetiu o erro de Hegel, considerando a democracia americana o auge da evolução, agora só faltando ao resto do mundo acertar o passo e chegar ao estádio final da história.
Longe vai hoje esse tempo, e os futurólogos já apontam a China como o novo detentor da tocha olímpica da marcha da humanidade, o que, a confirmar-se, seria uma espécie de reciclagem do percurso humano, por ninguém prevista antes dos dias que correm.
Mas então, se a base científica – isto é, empírico-racional – que, desde o século das Luzes, alimentou a ideia de progresso assenta numa base de areia movediça, o que nos permite continuar a entretê-la?
Precisamente aquilo que a nível individual pode animar cada pessoa a agir no seu quotidiano: mover-se por ideais, identificar objetivos não utópicos mas eventualmente acima das possibilidades, de modo a entusiasmarem a coletividade nos momentos tradicionalmente usados para se recarregar as baterias do espírito, e criar estruturas capazes de permitirem um gradual melhoramento da vida diária. Ao fim e ao cabo, aquilo que Karl Popper apontou como piecemeal engineering. Em vez de ideais revolucionários utópicos que acabam destruindo mais do que constroem, sugere-se a colaboração construtiva peça a peça, juntando os legos que melhor encaixam no aperfeiçoamento da condição coletiva.
É uma espécie de “utopia em dói menor”, como eu mesmo a apelidei num livro de há quase dez anos. Nada de superiormente grandioso, porque isso não seria realista, dada a complexidade cada vez maior e a interdependência absoluta de tudo ao nosso redor; mas sempre vislumbrando para além do horizonte limitado do quotidiano. Algo que nos permita uma visão de conjunto, de modo a podermos escolher as peças acertadas para cada lugar ou posição.
É isso o que nos resta da utópica noção de progresso oriunda das Luzes. Tal como o que acontece com os demais valores e ideais da modernidade (modernidade é o nome contemporâneo que as ciências sociais encontraram para esse conceito de iluminismo que nos adveio da filosofia e da história das ideias), ela não pode constituir um ideal absoluto. Temos hoje consciência clara das suas limitações e da impossibilidade de ela existir solta, sozinha, pois é inevitavelmente interativa a dinâmica dos ideais da justiça, da liberdade, da democracia e da ciência. Isto para além da nossa consciência da precariedade de qualquer metafísica ingénua.
Estou aqui a remoer um conjunto de ideias que ressaltam de um curso interdisciplinar que leciono na Brown há quase meio século, destinado a alunos finalistas de licenciatura (nos EUA são quatro anos). É altura de elevar um pouquinho o nível, entrando em diálogo com pensadores contemporâneos que se têm debruçado sobre esta temática. Escolho dois autores favoritos que respeito por razões diferentes.
Um deles é o inglês John Gray. Pessimista, é hoje um novo Schopenhauer, como aquele que ensombrecia e incomodava os pensadores das Luzes. Gray irrita por estar assistido de grandes razões. A sua identificação de graves erros, como o nazismo e o comunismo por exemplo, provocados pelos ideais da modernidade, é mais do que pertinente. Só peca por ignorar o facto de a falha não resultar das ideias em si, mas de algumas delas terem sido tomadas em sentido absoluto, sem serem entreajustadas, numa espécie de equilíbrio há mais de dois milénios recomendado por Aristóteles.
Num dos seus mais recentes livros, The Silence of Animals. On progress and Other Modern Myths, John Gray castiga os ingénuos incautos lembrando que a evidência fornecida pela ciência e pela história demonstra que, nos humanos, o elemento racional é apenas parcial e intermitente. Daí que recomendar o incremento da razão exija um passo no escuro de uma fé próxima do nível religioso. Gray acrescenta que, quando os humanistas contemporâneos evocam a ideia de progresso, operam apenas com uma mistura de dois mitos diferentes, o mito socrático da razão e o mito cristão da salvação. Para o filósofo, tal como acontece com a música pimba, o mito do progresso eleva a emoção, todavia adormece o cérebro. E vai mais longe:
A ciência e a ideia de progresso podem parecer caminhar lado a lado, mas o resultado final do progresso na ciência é revelar a impossibilidade do progresso na civilização. A ciência é um diluente da ilusão e, entre as ilusões que ela dissolve estão as do humanismo. A investigação científica pode ser uma incarnação da razão, mas o que a investigação demonstra é que os humanos não são animais racionais. […] A descrença hoje deveria começar por questionar não a religião mas a fé secular (ou profana).
Com todo o respeito pela brilhante inteligência de John Gray, cujos livros venho lendo atentamente há vários anos, devo apontar que o seu registo carrega uma leitura schopenhaueriana da história que poderíamos incluir numa das identificadas por Hayden White no seu clássico Metahistory. Quer dizer: trata-se de um registo de sensibilidade – ou, se preferirmos – de uma tonalidade que tem algo a ver com o âmbito da estética e não exclusivamente da ciência. É uma perspetiva nos antípodas do Pangloss de Voltaire (e mesmo nos antípodas de Marx) que tem a apoiá-la uma lista longa e negra dos crimes de lesa-humanidade acumulados no decurso de séculos.
Essa perspetiva ignora, porém, os perigos da chamada self-fulfilling prophecy. Por outras palavras, esquece que, se os seres humanos se convencerem de o mundo ser uma selva e de todos sermos lobos do nosso semelhante, a profecia mais pessimista acabará por cumprir-se inevitável e deterministicamente, porque ninguém acreditará ser possível dela escaparmos. Recorro de novo a Freud agarrando dele o título de um dos seus clássicos – O Futuro de Uma Ilusão – onde o autor vaticina o futuro da religião. A “religião secular” que John Gray desdenha é fundamental para nos permitir melhorar um pouquinho a selva em que vivemos, tentando debelar-lhe os seus piores males e evitar dela os mais graves perigos.
Jürgen Habermas, na melhor tradição do iluminismo, nunca se cansou de insistir na importância de uma atitude positiva relativamente à implementação dos valores da modernidade, incluindo o do progresso – no seu caso específico alimentado por alguns resquícios de marxismo. Mas digamos que se tratava de aproveitáveis resquícios, pois o marxismo tinha afinal essa vantagem de alimentar a crença na ingenuidade rousseauna da bondade do selvagem humano. Nós hoje sabemos do que ele é capaz, mas também temos consciência de que o holocausto não foi a única criação humana. A Acrópole de Atenas, a 5ª sinfonia de Beethoven, a catedral de Westminster e a Apolo 11 que levou Armstrong à lua são também criações e construções humanas, produtos da mesma massa que instaurou a Inquisição e desencadeou as duas Grandes Guerras, entre as centenas de outras que ao longo dos séculos têm envolvido a espécie humana.
Não nos resta outra hipótese senão a de mantermos a cabeça fria e nos focarmos nas alternativas que melhor se nos oferecem para prosseguirmos em marcha, isto é, para continuarmos sobrevivendo nas gerações que nos seguirão. Há que erguer alto bastante o nosso ponto de mira. Alguns preferirão mesmo a fazê-lo um nível utópico, contudo os mais calejados pela experiência em regra preferem optar por objetivos alcançáveis, ainda que a longo ou médio prazo. Neste domínio, eu próprio me situo bastante mais próximo de Steven Pinker do que de John Gray. No seu mais recente livro intitulado Rationality (escrito, se não a pensar em John Gray, pelo menos em outros pessimistas como ele), Pinker reconhece que a ideia de progresso tem uma história de luta. Nada ocorre linear e deterministicamente.
Na verdade, não imagino como se poderá negar o progresso atual na garantia de direitos humanos com os seus reflexos em domínios como a igualdade da mulher, das minorias (sejam étnicas sejam sexuais), os direitos das crianças, o acesso à educação, os direitos dos trabalhadores e até dos animais, para não falarmos nos avanços da ciência, da medicina, da tecnologia, de modo particular nas comunicações.
No entanto, acreditar no progresso e executá-lo nãose trata de um empreendimento fácil. Se até aqui foi complexo, hoje e no futuro ainda o será mais. Ian Hodder, no seu recente livro Where Are We Heading?: The Evolution of Humans and Things constrói um válido argumento propondo uma saída intermédia entre a ingénua ideia de progresso inevitável e a evolução natural sem direção específica, apelando para a nossa compreensão de uma história cada vez mais interdependente.
Os seres humanos individualmente, tal como as coletividades, as nações, mas também cada peça da sociedade moderna (seja o gás, a eletricidade, o petróleo, a água, o pão e a manteiga, o vinho e os agasalhos) são realidades que envolvem cada vez mais diferentes setores de inúmeras comunidades com interesses e objetivos específicos.
Não dispomos nunca de uma solução ideal para a resolução dos nossos problemas; temos apenas de lidar constantemente com escolhas, por vezes aceitando males menores, opções de prioridades, perdas para se obter alguns ganhos, prejuízos para se conseguir alguns benefícios. Mas nada disso nos impede de olhar para diante e para o alto, procurando melhorar situações numa perspetiva de “maximização”, como referia John Rawls no seu hoje clássico Uma Teoria da Justiça: nas trocas que somos quotidianamente forçados a fazer, há que maximizar os benefícios e minimizar os prejuízos.
Muito recentemente, John Gray, que vê com olhos derrotistas a história dos últimos séculos do Ocidente, publicou no The New Statesman um artigo em que espantosamente reconhecia que os ideais da modernidade, que enformaram a história do Ocidente nos últimos três séculos, não morreram. Segundo ele, simplesmente emigraram para a China, onde sobrevivem e florescem. Admite que não toma como erradas as ideias que criaram o Ocidente, apenas considera que deixámos de praticá-las devidamente. Em sua opinião, o estudo dos clássicos do Ocidente é hoje promovido nas universidades chinesas, e os seus textos são frequentemente ministrados em grego e latim. A China representa um “estado-civilização” assente nas ideias de harmonia social propostas por Confúcio.
Afinal, a minha antiga e fundamental divergência, de há mais de uma dúzia de anos, relativamente a John Gray não acertava no alvo. John Gray não discorda dos valores da modernidade, que para mim são insubstituíveis, apenas não crê que os ocidentais tenham tido sabedoria para implementá-los devidamente. Para ele, são os chineses que estão hoje a conseguir fazê-lo com êxito, bebendo ideias e ideais no nosso passado. E entre esses ideais conta-se o progresso, realidade indiscutível por força de uma vontade coletiva que ainda há poucas décadas acreditava piamente defendia os ideais marxistas.
Nunca imaginei ser possível estar eu de acordo com John Gray. Mas, na verdade, com base no que me tem sido dado observar na cultura chinesa e, particularmente, nos alunos chineses e outros asiáticos que tenho acolhido na sala de aula, não deixo de reconhecer um notável fundo comum de inesperado acordo. Apenas não darei de barato que a torcha da evolução tenha regressado à China, deixando o Ocidente às escuras. Ainda estou em crer que a nossa capacidade de autocrítica, de admissão de erros, de reconhecimento da necessidade de arrepiar caminho, e de prosseguir numa direção inteiramente nova ditada pelo bom senso, nos não tenham abandonado de todo. A grande luta de fundo entre os valores da liberdade e da justiça, que há dois séculos se nos revelaram como os valores últimos almejados pelos seres humanos, ainda não me parece ter sido devidamente resolvida nem num lado nem no outro. Caso para concluir que a luta continua e há que manter empenhada esperança em que dessa dialética resulte um avanço que, não sendo nem inevitável nem definitivo, seja, pelo menos temporariamente, para melhor.
Considerando as alternativas, suponho que não nos resta outra opção. O ideal do progresso não pode nem deve ser posto de parte. Os sonhos, as utopias e os ideais poderão não ser atingíveis, todavia se acreditarmos que à nossa frente só encontraremos precipícios e poços de podridão, está visto que as nossas decisões só poderão deixar-nos atolados neles, sem qualquer hipótese de sobrevivência.
Pascal alertou-nos. Em termos pragmáticos, as nossas probabilidades de escolha indicam-nos bem claramente qual a aposta capaz de nos garantir um mínimo de êxito.