Ela disse: do que sinto mais falta é de acordar preguiçosa de manhã, num quarto de hotel, com o suave bater na porta do empregado elegante, que traz num carrinho as bandejas de um pequeno almoço de ovos mexidos, sumo de laranja e três tipos de croissants. E de preparar-me para uma massagem de corpo inteiro, enquanto escuto, ao vivo, um quarteto de cordas a tocar Mozart e deixo-me permanecer, deitada, na dúvida se estou acordada ou a dormir, parra depois me entreter no jacuzzi de água macia a sorver as bolhas do champanhe.
E ela disse: do que sinto mais falta é de não ter de ligar o portátil para trabalhar, nem fixar rostos no zoom, mas antes encontrar os colegas no local de trabalho e abraçá-los, como se de amigos se tratassem, e com eles trocar impressões sobre o fim-de-semana anterior, exagerando sempre nas façanhas e, por pirraça pu castigo, trancar o chefe no gabinete, decretando-lhe um isolamento profilático, para bem estar da empresa em geral.
E ela disse: do que sinto mais falta é de encher a casa de amigos, convidar todos os seguidores do Instagram, e também do Facebook, mesmo aqueles que só conheço de nome, para um jantar volante, com álcool à descrição e música no volume máximo para pôr vizinhos e polícia a dançar.
E ela disse: do que sinto mais falta é de me deixar arrastar pelas multidões em dias de festa na cidade, sem sentir os pés no chão, sem controlar os passos nem definir direções, roçando os braços no corpo de estranhos, sem recear apanhar doenças, receber manjericos de desconhecidos, beber ginginhas à descarada em copos mal lavados e também caipirinhas e daiquiris, ao som de música pimba de alta qualidade, enquanto dou marteladas na cabeça de quem mais merece.
E ela disse: do que sinto mais falta é de sair do emprego de mochila às costas, explicando ao chefe que está sol, e apanhar o comboio até á cidade mais próxima, e depois até à seguinte, mudar de país, atravessar o oceano, percorrer África a pé, ir até à India, descobrir a América, chegar à Austrália, dar banho às focas aprender a saltar com os cangurus.
E ela disse: do que sinto mais falta é de ouvir num estádio a minha banda preferida e depois transportarem, em braços, por cima da multidão até ao cantor, que me sussurra um verso ao ouvido e canta uma música só para mim
E ela disse: do que sinto mais falta é de ir para a discoteca dançar, ao som da música que ouvia na adolescência, antes da Covid, fazer piruetas, espargatas, mortais, subir para cima da coluna e deixar que a vibração se apodere do meu corpo, enquanto a pista inteira me aplaude e me cobiça.
E eu disse-lhe: mas, querida, antes da Covid também não fazias nada disso.
E ela disse: eu sei, deve ser por isso que sinto tanta falta.