Discurso imaginário
Num discurso feito recentemente na Associação Imaginária das Viúvas dos Guardas da Costa Marítima, começou assim o Cientista, citando o Poeta: «Cantam nevoeiros os sons das sirenes ao longe»
Minhas senhoras: Todos sabemos que nem os nevoeiros cantam nem as sirenes falam a linguagem dos mortais, que um dos verdadeiro tesouros da evolução é a memória, a memória partilhada dos lugares onde há água em tempo de seca, poder vir a saber com o passar do tempo o significado das experiências que nos unem ou nos dividem. A magia, a mais pura magia humana é poder dizê-lo com a linguagem imortal da Poesia. Saber que os outros, porque um dia experimentaram as mesmas coisas, vão perceber o que o Poeta queria dizer usando tão poucas palavras.
Pediram-me que fizesse este discurso na vossa série Autobiografia.
António Damásio, no seu livro The feeling of what happens (Sentimento de Si), define diversos tipos de self ( si), desde o protoself, «uma colecção não consciente de representações de dimensões múltiplas do estado do organismo» ao «si autobiográfico». O si autobiográ.co ocorre em organismos dotados com uma memória substancial e a capacidade de usar a razão, mas não requer a linguagem1» Quem como nós, seres humanos, tem o dom da linguagem, corre não só o risco de ser convidado a usá-la em ocasiões como esta, mas a cair na tentação de aceitar.
O mistério esta noite não é lembrar só sons que ao longo dos anos as devem ter alarmado quando os vossos maridos estavam no mar, o mistério é terem tomado a decisão extraordinária de me convidar para falar sobre «mim-eu autobiográ.co».
Os cientistas em geral contam histórias do que lhes aconteceu ao longo da sua vida cientí.ca a entrevistadores curiosos e ciosos de deixar arquivados em livros os pontos que eles consideram mais relevantes desses diálogos. É pouco comum um grande cientista escrever a sua autobiografia. Darwin é uma encantadora excepção2. Decidiu escrever a sua autobiografia porque lhe teria interessado saber “como pensava e como trabalhava o meu avô, escrito por ele próprio3» .
TH Huxley escreve a um editor, o Sr Engel, dizendo: «Quando me escreveu pela primeira vez eu disse-lhe que não teria nada a ver com o que quer que dissesse sobre mim, que eu tinha uma objecção profunda a escrever sobre mim próprio, e que não via o que é que o público tem a ver com a minha vida privada. Penso que cheguei a expressar a minha completa simpatia com o desejo do Dr Johnson de tirar a vida a Boswell quando ouviu que este último se estava a ocupar da sua biogra.a».
«…confronta-me agora com a alternativa de publicar qualquer coisa que pode estar errada, se eu não lhe der algo com autoridade; não digo ‘all right’, porque autobiografias são essencialmente trabalhos de ficção.4» Mesmo uma memória substancial só vai recordar momentos sentidos como se fossem únicos, que só podem acontecer com alguma pureza na infância.
Diria que tenho dois momentos autobiográficos talvez com interesse, na infância. Um de que me apercebi na altura. Outro que só vim a valorizar com a passagem do tempo. O primeiro aconteceu na escola primária. Tínhamos 6, 7 anos. Uma professora sensível e inteligente, a Sra Dona Fausta, mandou-nos para um canto resolver a questão da multiplicação por zero. Fácil: se não temos nada, multiplicar nada 5, 10, 15 vezes, resultaria sempre em nada. Mas se já temos 5, 10 borrachas, e agora multiplicamos por zero, desaparece tudo? Não tão fácil para uma criança perceber que zero não é igual a nada. Que é outra coisa. Outro mundo, o mundo fascinante da invenção matemática. Um mundo em que a invenção passou a ser parte da realidade apreendida com a evolução do cérebro humano.
O outro momento prende-se com a prima que aceitou o desafio de me ensinar a tocar piano antes de ter aprendido a ler. Era portanto necessário usar de grande imaginação para explicar que uma pauta é como uma armário comprido de linhas com prateleiras onde se arrumam as notas. Numa clave de sol, o ré está pendurado para baixo da prateleira de baixo, o fá, o lá e o dó estão entalados mais acima, e os pobres mi, sol e si cortados ao meio por três dessas mágicas cinco linhas. Quando minha mãe decidiu que eu deveria aprender a ler mesmo, teve que confrontar a rebeldia de quem tinha percebido muito cedo que não há a, e, i, o, u, sozinhos, como não há nota musical sem pauta. Nenhuma letra nem a mais «à solta» está livre das letras que a rodeiam. Psicólogos capazes de uma análise penetrante da raíz das escolhas dos adultos poderão pensar que quando eu vim a usar uma citação de Aragon na abertura de um artigo cientí.co sobre células T «Um homem tem que ser visto entre outros homens. Um homem só, não é um homem é um retrato5, já era coisa que me vinha de criança. Pura ficção? Uma parte divertida da leitura que podemos levar os outros a fazer de nós? Mas nós também não podemos fazer uma leitura exacta de nós próprios. Porque a memória, como temos também ela está pro-fundamente ligada a experiências que causam grande emoção1.
«A minha lembrança mais antiga, em que eu deveria ter um pouco menos de quatro anos», diz Darwin, «foi enquanto sentado ao colo da minha irmã Caroline, que me cortava uma laranja, uma vaca entrou pela janela…2».
As biografias deverão ser deixadas aos historiadores.
Podemos viver com A Origem da Espécies sem saber ao certo se uma vaca entrou ou não pela janela da sala onde Darwin aos 4 anos estava sentado ao colo da irmã. Já o mesmo não direi da leitura das notas da Viagem do Beagle6.
Por exemplo, eu prórpia poderei dizer-vos hoje nomes de lugares por ordem alfabética: Aberlemno, Alto do Dafundo, Belém, Berlim, Bri-ghton, Dumbarton, Dumbarton Oaks, Dunsilane, Ginetes, Horsham, Marbäcka, New York, Paris. Mas na realidade nada do que lembramos «como se fosse hoje», aconteceu por ordem alfabética. Na minha experiência, as coisas mais importantes para a construção do eu autobiográ.co não parecem acontecer por ordem nenhuma. Parecem simplesmente acontecer. Aberlemno, por exemplo, «aconteceu» pela cor dos vitrais, Dunsilane por nos termos perdido e finalmente nos termos achado em terras de Macbeth. Marbäcka, quando lá fui, já era viagens de gansos e memórias de outros que ainda conheceram Selma Lagerlöf lá. Ou outros que foram amigos em New York de Kapa, o fotógrafo, ou de Saint-Éxupéry, o do Principezinho, em Paris. Creio que a partir de muito cedo, nada nos impressiona com a força da emoção do que acontece pela 1ª vez.
Excepto o momento em que um cientista faz uma descoberta. Aí, o momento volta a ser unicamente só e primeiro, como acontece na criança. A contribuição cientí.ca não é mais só saber o significado das coisas que se experimentaram, mas contribuir para perceber o significado de coisas a vir, que não se sabiam assim antes. Embora o que se vem a escrever sobre esse acontecimento venha a pertencer ao eu curricular, a experiência é verdadeiramente marcante para o eu autobiográ.co. Estar sozinho onde ninguém esteve antes. Ou ter a experiência do deslumbramento de perceber uma coisa que, como o zero, parecia simples, e não era nem tão simples como parecia, nem tão bem percebida como o que vem nos livros faria crer.
Minhas senhoras:
O eu autobiográ.co nem sempre coincide com o eu curricular. Não é portanto uma grande ideia, embora muito generosa, esperar de um cientista que escreva a sua autobiografia, mesmo em 8 mil caracteres, como me pediu o director do jornal da vossa associação. Um cientista tem a maior dificuldade em fazê-lo. O eu autobiográ.co tem muitas vezes que se submeter às exigências do eu curricular. Curiosamente é pelo curriculum que nos convidam7. O eu autobiográ.co gostaria de ter passado mais tempo ao pé do mar. De se ter perdido no nevoeiro em terra. Rara-mente se perdeu. Precisamos de tempo, de uma bússola e de companhia em que possamos con.ar para nos perdermos. Ou da certeza das vozes das sirenes.
Na vida real é de tanto nos perdermos que nos achamos. Mas com efeito ninguém tem nada com isso, como diria TH Huxley.
1. Damasio, A., The Feeling of What Happens, 1999, Harcourt Brace & Company 2. Darwin, C., in Charles Darwin and Thomas Henry Hu-xley. Autobiographies, Oxford University Press, 1983 3. Erasmus Darwin 4. Huxley, TH., in ref 2.
5. De Sousa, M, The ecology of thymus dependency, 1973 6. Moorhead, A, Darwin and the Beagle, 1971, Penguin Books 7. Professora catedrática de Imunologia, ICBAS, Uni-versidade do Porto (1985-). Fellow, Royal College of Pathologists (UK), Membro, EMBO, Membro Corres-pondente, Academia de Ciências de Lisboa, Membro, Academia de Medicina, Professora Adjunta, Cornell University Medical College (New York). Duas desco-bertas: a área T (ver imagem). A descoberta de uma sobrecarga de ferro em ratinhos de.cientes num gene de interesse imunológico no seguimento de um postulado publicado enquanto dirigia o Laboratório de Ecologia Celular no Sloan Kettering Institute em New York, 1976-1985) e de trabalho feito com Graça Porto.