Quando acabei de ler A palavra que Resta, do brasileiro Stênio Gardel, lançado na Feira do Livro de Lisboa, não hesitei em escrever na folha de rosto “O mais belo romance publicado em Portugal em 2024”, não que tivesse lido todos, sobretudo os de autoria estrangeira, mas a qualidade, a excelência em todos os aspetos por que um romance pode ser apreciado é do mais alto nível, podendo ser igualada, mas muito, muito dificilmente ultrapassada.
No momento em que o romance português se encontra num nível de esgotamento de temas e de estilos, ler A palavra que Resta é, como leitor, voltar a encontrar o encantamento da leitura e voltar a acreditar que um romance (a arte) pode salvar-nos a vida, reenviando-nos para o antigo Humanismo cujos valores davam sentido à existência humana, sobretudo na Europa.
ler “A palavra que Resta” é, como leitor, voltar a encontrar o encantamento da leitura e voltar a acreditar que um romance (a arte) pode salvar-nos a vida
miguel real
Stênio Gardel pratica a liberdade de escrita própria do romance brasileiro nordestino (José António Almeida, Jorge Amado, Graciliano Ramos…), um romance feito de sentimentos e de sensibilidade, com uma vibrante emoção à solta, escrito numa linguagem crua, despida de arroubos retóricos, uma linguagem coloquial de natureza popular, o uso vernacular do Nordeste do Brasil, esquecidos totalmente os preceitos gramaticais da Língua Portuguesa de São Paulo ou do Rio, e, evidentemente, de Lisboa, fazendo lembrar o português escrito pelos três últimos brasileiros que venceram o Prémio Leya, sobretudo a belíssima escrita de Itamar Vieira Júnior.
Espantoso: como um “mau português” pode dar um romance tão belo. Um estilo torrencial, eletrizante, um caos no uso da vírgula, que ressume o parágrafo em cada frase, e cada parágrafo sintetizando o lirismo de todo o livro, como se este fosse uma mónada de Leibniz com muitas portas e janelas para a leitura e crítica do mundo, levantando denúncias contra os preconceitos.
Preconceitos sobre a homossexualidade e preconceitos contra a mudança de género, já que no romance outra singular protagonista “era Francisco das Chagas de Oliveira” virado oficialmente “Suzzanný Dinamarka” com dois zês, dois énes e um acento agudo no ípsilon.
E o tema – absolutamente fraturante no campo do romance português (no Brasil, desconheço): a homossexualidade masculina. Dois sertanejos amando-se na roça, junto a um rio que ostenta uma cruz ereta, incapazes de não se amarem, não querendo, disso se envergonhando, mas incapazes de não procurar os “buracos” mútuos.
É um sexo telúrico, feito à sombra de um cajueiro. É este o tema: um rapaz (Raimundo) amando outro rapaz (Cícero), que lhe corresponde. E porque aquele lhe é especial, não lhe chama como todos o chamam, chama-lhe Gaudêncio (nome do meio), já que o último (Freitas) é nome trágico.
Um belíssimo romance, que nos reconcilia com a literatura
miguel real
A Palavra que Resta é a história de amor entre Gaudêncio e Cícero, narrativa prenhe de todas as qualidades que Shakespeare encheu Romeu e Julieta: amor, preconceito e tragédia. Esta tripla qualificação era o título desta crónica quando originalmente a escrevi.
Depois, pensei que o leitor presumiria que eu me referia a mais uma xaropada recentemente publicada e nem sequer leria a primeira linha. Então, não faltando à verdade e acreditando que assim atrairia a curiosidade do leitor, tive a miraculosa ideia de a intitular “O mais belo romance de 2024” [que li até agora].
Os pais másculos de ambos, seu Nonato e seu Damião, não aceitam a homossexualidade dos filhos – nasce a tragédia da separação entre os amigos, Raimundo comendo porrada de três em pipa do pai, de tal modo que a pele vira couro de tanta tareia levada.
Cícero parte, foge do “sítio”, sem explicação a Raimundo. Deixou uma carta num envelope fechado a um Raimundo analfabeto. Marcinha, sua irmã, poderia ter lido a carta, mas Raimundo não deixou. Com um aviso da mãe Caetano, que não posso revelar aqui, relativo à cruz ostentada na margem do rio, Raimundo fugiu do povoado e passou a vida a atravessar o Brasil, acartando carregos às costas.
Hoje, com 71 anos, regressou a casa (é o início do romance), vai finalmente aprender a ler e a escrever para ler a carta do amante deixada 52 anos antes. E responder-lhe. E, assim, escrevendo, revê a sua vida como uma narrativa pícara, na qual Raimundo perdendo o todo da vida, ganha-a no final, registando-a por escrito.
Um belíssimo romance, que nos reconcilia com a literatura. Não por acaso, A Palavra que Resta foi vencedora do National Book Award para a melhor obra estrangeira traduzida para inglês.