“O adversário é o melhor amigo do investigador”
Costumo citar esta frase – cujo autor lamentavelmente esqueci – mudando-lhe o fim conforme as conveniências: de facto “o adversário” pode ser também o “melhor amigo” do decisor, do repórter ou simplesmente de quem escreve um artigo…
Este foi desencadeado por um amigo de infância rabugento que comentou um post no facebook sobre a visita que algumas das autoras do livro Exils au Féminin (entre as quais me incluo) fizeram/fizemos ao Luxemburgo, Bruxelas e Paris para sua apresentação a um público maioritariamente de imigrantes portugueses nesse “Lá fora” durante a ditadura tão sonhado…
Dizia o meu amigo de infância rabugento que não se tratava de “exílio” ,visto que as mulheres tinham simplesmente acompanhado amigos, namorados ou maridos mas não tinham sido “obrigadas” a sair do país nem estavam impossibilitadas de a ele regressarem. E acrescentava depois que exilados eram, aliás, muito poucos, em geral tratava-se maioritariamente de emigrantes e também esses não seriam muitos.
Ora tem ele em parte razão e já tínhamos discutido muito o assunto entre nós. Em geral, começo aquelas apresentações com essa questão mas esclarecemos, no início do livro, que adotámos um conceito abrangente de “exílio” : “Devemos apenas considerar como exílio aquele a que nos vimos forçados face ao perigo iminente da prisão … ou também o voluntário, o que nos leva a afastar-nos da pátria por razões políticas numa atitude de rejeição da ordem vigente?” (Amélia Resende, Beatriz Abrantes, Fernanda Oliveira Marques, que coordenou, Helena Cabeçadas, Helena Rato, Irene Flunser Pimentel e M. E. Brederode Santos, Lisboa, Coedição AEP61/74 e Ed. Afrontamento, editor coordenador Carlos Valentim Ribeiro, 2023, p. 11) .
Acresce que muitas dessas mulheres, podendo de facto vir a Portugal, desenvolveram determinadas atividades políticas, designadamente de ponte e pombo correio entre o “interior” e o “exterior”.
Com razão ou sem ela, o que interessa aqui é que, por esse motivo, fui reler um belo ensaio de Manuel Pedroso Marques, Os Exilados Não Esquecem Nada mas Falam Pouco (Lisboa, Âncora Editora,2015) em que o autor, entre “factos e outras memórias”, começa por descrever a “estrangeneidade”, sensação que será comum tanto ao “exilado” como ao “emigrante”.
Recorda diferentes formas de “exílio”: “o estrangeirado”, o exilado, o refugiado, o banido, o deportado…Define cada uma destas situações, inclusive o seu significado jurídico e a sua utilização na história de Portugal e no mundo, designadamente na Europa e na América do Sul.
Defende como “aceitável” o “relativo paralelismo” entre a emigração económica e o exílio político: “Ainda que não haja consciência no emigrante de que as razões da sua procura de vida no estrangeiro sejam de cariz político, há situações sociais e políticas que o empurram para a emigração”.
Refere ainda estudos de Miriam Halpern Pereira segundo os quais, na primeira metade do século XIX, “a palavra emigrante referia-se a quem tivesse sido constrangido a abandonar o país, independentemente do motivo e do estatuto social” (p.103).
Quanto a números, diz-nos Pedroso Marques: “De 1820 a 1927 os emigrantes europeus descobriram o Novo Mundo. Foi a grande emigração para os Estados Unidos e para a América do Sul. Mas a quota dos lusitanos no Brasil relativamente à população do país é a mais elevada: 1 250 000 emigrantes. Cerca de 10% da população brasileira em 1850 (…)”.
A partir do início da década de 60 inaugura-se novo destino e nova modalidade de emigrar. Para a Europa e a ‘salto’! (…) chegando a atingir 180.000 pessoas, em 1970! A maioria é de jovens, sendo evidente a injunção política contra a guerra colonial ou a falta de motivação para nela participar (…) No período da Guerra Colonial, nos dez anos que antecedem o 25 de Abril, a uma média não inferior a cem mil portugueses anualmente… (p. 105) Em 2010, Portugal contava com 1 558 000 cidadãos emigrados, ou seja, 15,4% da sua população…” (p. 106)
É claro que o autor refere também diferenças entre exilados políticos e emigrantes económicos mas o que aqui e agora me interessa são as comunidades portuguesas no estrangeiro, seja qual for a sua origem e incluindo também os que são já de 2ª – ou mais – geração.
É que tendo sido convidadas para apresentar a versão francesa do referido livro no Luxemburgo, Bruxelas e Paris, foi-nos dado descobrir comunidades portuguesas no estrangeiro com uma vida cultural dinâmica e vibrante:
Em Dudelange e na cidade Luxemburgo, o Centre de Documentation sur les Migrations Humaines que assegurou a edição francesa, a Associação de Exilados portugueses 61-74 cujo representante no Luxemburgo, António Paiva, é também motor desta edição e autor do prefácio, e o Centre Culturel de Rencontre Neimenster onde a sessão teve lugar e onde tivemos a oportunidade de conhecer, entre outros, Ana Cristina Gonçalves, locutora e produtora da Radio Latina, uma estação luxemburguesa que emite em língua portuguesa, e Ricardo Rodrigues, redator de um jornal em português já premiado a nível europeu como o “Melhor jornal europeu local” em 2020, Contacto.
Em Bruxelas, fomos convidadas e recebidas por Maria José Gama, presidente da Associação José Afonso, Núcleo de Bruxelas, fundado em 2016.
Na nossa sessão, apresentada em colaboração com a Universidade Livre de Bruxelas e o Instituto Camões, e inserida nas celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, Helena Cabeçadas teve a oportunidade de agradecer à Bélgica a sua hospitalidade para com os refugiados portugueses dos anos 60.
A sessão foi moderada por Adriana Costa Santos, co-presidente da Plateforme Citoyenne de Soutien aux Réfugiés – de cuja ação recente no apoio ao realojamento de refugiados na Bélgica já tivéramos ecos em Portugal!
Em Paris, ou melhor, nos seus arredores, começamos por ir a Nanterre (sobre essa ida ver “O regresso aos lugares de Cohn-Bendit e Deleuze” por Amélia Resende, in Notícias Sem Fronteiras de 28 Abril 2024) onde o CRILUS – Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone organizou uma aula aberta a estudantes de mestrado e doutoramento, dinamizada por Graça Santos, profª catedrática no Departamento de Estudos Portuguesas e coordenadora do CRILUS, em colaboração com José Manuel Mendes, responsável pela Chaire Lindley Cintra, criada pelo Instituto Camões em 2002, na Universidade de Nanterre.
Graças a essa sessão ficámos a saber da existência de um considerável número de investigações e trabalhos em curso em vários domínios, de que fixei a Literatura (com teses sobre Isabel Barreno mas também Orlanda Amarílis e muitos outros autores de língua portuguesa, incluindo de Macau) e a História. Ficámos também a saber, pelas palavras de jovens participantes, a dificuldade de muitos pais e sobretudo avós em recordarem os tempos duros de emigração vividos.
Finalmente, tivemos também direito à visita mais inesquecível e comovente: Champigny, considerado, em França, o maior dos “bidonvilles” e um “escândalo” social, onde nos anos 60, milhares de portugueses saídos de Portugal a salto se instalaram.
Sobre essa vivência existem filmes, designadamente do realizador José Vieira e um excelente livro de Marie Christine Volovitch Tavares, Les Portugais à Champigny – le temps des baraques, em que a autora dá conta também do processo de realojamento na região – o que nos permitiu compreender a existência de dois monumentos: um em homenagem à comunidade portuguesa e outro desta comunidade, com o título “O dever da memória”, inaugurado em 2016 e dedicado ao presidente da Câmara Louis Talamoni que procedeu ao fim do bairro da lata e ao realojamento dos portugueses na região.
Sobre este monumento existe também um livro de fotografia de Valdemar Francisco que escreve: “Na memória de cada um há sombras e luzes (…) Bairro da lata ou não, ninguém saiu ileso desta vivência. Ao longo dos anos, os franceses e os portugueses de França teceram laços de amizade e de solidariedade muito fortes (…) Esse dever de memória está, enfim, materializado!” O livro, bilingue, chama-se justamente Le Devoir de Mémoire.
Para nós, hoje, em Portugal, parece-me que não há só um “dever de memória” mas também de conhecimento. É tempo de retomar relações e de aprendermos uns com os outros!