Na minha casa, a ceia de Natal era, aos meus olhos infantis, um autêntico festim: cobria-se a mesa de frutos secos e acepipes diversos (pastéis de bacalhau, rissóis de camarão, croquetes de vitela), para entreter a fome dos muitos comensais. Na verdade, a ceia de Natal era uma comemoração de família, onde cabiam a irmã do meu pai e os irmãos e sobrinhos da minha mãe, coisa para dúzia e meia de convivas. A função só começava verdadeiramente com o bacalhau cozido com couves (mas sem grão) regado por um azeite que, pelos padrões de hoje, devia ser de acidez elevada e gosto muito acentuado. Vinha depois o peru assado e laboriosamente recheado pela arte e engenho da minha mãe, que nesses dias tomava conta da cozinha para pôr em prática (superiormente, reconheça-se) conhecimentos que recebera de uma cozinheira trasmontana.
Mas as sobremesas é que desatavam a cornucópia da abundância: leite-creme queimado, arroz doce traçado de canela (que eu sempre detestei), mousse de chocolate, pudim molotof (corruptela do original pudim de claras, que se chamava pudim Malakof), sonhos, rabanadas (a que chamávamos fatias douradas) e, até, as imprescindíveis broas de mel, que faziam as delícias dos mais velhos, mas pelas quais eu e os meus primos passávamos como cão por vinha vindimada. Eles preferiam a mousse, eu fiquei para sempre devoto das fatias douradas.
Com intuitivo sentido das proporções, eu achava que isto era um festim, não um banquete. De facto, em português a palavra designa uma “lauta refeição” (Caldas Aulete, 1881) de características particulares, no que se afasta dos públicos banquetes de homenagem que abundavam na ronceira sociedade portuguesa dos anos 1950. Molière deu à sua tragicomédia sobre Don Juan o subtítulo Un festin de pierre, em alusão à ceia para a qual o libertino convida a estátua do Comendador; n’O primo Basílio, Eça alude ao “festim de Lúculo”, referindo-se à excêntrica prodigalidade com que Lucius Licinius Lucullus, general e cônsul romano do século I a.C., recebia em sua casa os convidados; e Proust também se refere aos “festins de Lúculo” como padrão de todas as grandes refeições. Em todas as línguas românicas, nas quais a palavra existe, este caráter privado é atribuído a festino (em italiano), festin (em francês), festin (em espanhol). E, mesmo em inglês, a palavra mais corrente é feast.
Mas já quanto à etimologia, as versões variam: Machado filia festim no italiano, o dicionário da Real Academia Española atribui-lhe paternidade francesa. Na realidade, a raiz da palavra deve ser encontrada no latim festum, ou em festa, que pode ser traduzido por feriado, festival, (o banquete, mais recente, provém do italiano banchetto) ou, simplesmente, “lauta refeição”, como pretendia o bom Caldas Aulete. E onde melhor a procurar do que no Satyricon de Gaius Petronius (Arbiter elegantiae da corte de Nero), romance (ou coisa que o valha) fragmentário, torrencial e lacunar, escrito na década de 60 da era cristã, nos últimos anos de vida do seu autor? No centro daquilo que nos chegou (apenas um décimo do original de Petrónio), está a “Cena Trimalchionis”, expressão habitualmente traduzida por “festim de Trimalquião”, que narra uma refeição opípara e surreal oferecida por um ex-escravo que enriqueceu (muito e muito depressa), e ostenta de forma quase obscena a sua abastança. Em latim, cena designa uma jantarada, uma refeição copiosa.
A de Trimalquião brada aos céus, povoados profusamente pelos inúmeros deuses do paganismo então ainda dominante no Império romano. À domus de Trimalquião, situada algures numa cidade da Campânia razoavelmente distante de Roma, chega um trio de figurões que vivem de expedientes, formado por Encólpio, o seu amigo Ascilto e um jovem escravo cuja beleza desperta a concupiscência dos dois: Gíton será o pomo da discórdia entre eles. São atraídos pela perspetiva de “um jantar livre de entraves”, que é como quem diz uma refeição à borla. Mas nem nos seus melhores sonhos podiam imaginar a natureza do festim que Trimalquião lhes vai proporcionar.
Regado a vinho de Falerno, da colheita célebre de 161 a. C. (tinha duzentos anos!), o ágape (esta aqui é de origem grega…) inicia-se com uma sequência de acepipes, onde se destacam umas “salsichas acabadas de assar, numa pequena grelha de prata, debaixo da qual se encontravam ameixas de Damasco e grãos de romã”; uns ovos de pavão cada um deles agasalhando um papa-figos “envolto em gema de ovo apimentada”; uns arganazes “polvilhados com mel e dormideira”. A sequência de pratos, cada um mais rebuscado que o anterior, é de causar náuseas, sobretudo o que derramava garum, um condimento muito apreciado feito à base de vísceras de peixe fermentadas, sobre peixes possivelmente cozidos ou grelhados. Mas não posso deixar de salientar o meu preferido, o javali assado que traz nas presas dois cestinhos, um com tâmaras frescas, outro com tâmaras secas, rodeado por leitõezinhos feitos de maçapão, que faziam as vezes das crias sedentas da fêmea. Vem ao triclinium um magarefe, que espeta nos flancos do bicho um facalhão de caça; e, espanto dos espantos, “do corte escaparam-se uns tordos a voar”.
É verdade que não há fome que não dê em fartura: excedidos pela refeição pantagruélica (avant-la-lettre), os três companheiros desatam a fugir, mas perdem-se no labirinto que é a Domus Trimalchionis, do qual vão emergir para novas e não menos perigosas aventuras. Era mais curto e previsível, admita-se, o trajeto que me conduzia da sala onde se celebrava a ceia da Consoada até ao local onde, em volta da árvore de Natal, se acumulavam os presentes que eram, para nós, a verdadeira razão de ser desta apesar de tudo moderada celebração. Um festim, só na minha imaginação infantil, e apenas porque ainda não tinha ouvido falar de Trimalquião.