Os acontecimentos dramáticos ocorridos na Bolívia seguiram um guião imperial que os latino-americanos começam a conhecer bem: preparar a mudança de regime de um governo considerado hostil aos interesses dos Estados Unidos (ou melhor das multinacionais norte-americanas). Fazem-no orquestrando um plano duplo: anular uma vitória eleitoral “inimiga” e consolidar rapidamente o novo regime que toma medidas que não são próprias de um governo de transição. O que aconteceu na Bolívia foi duplamente surpreendente. Por um lado, a aposta social e económica de Evo Morales era saudada pelos média internacionais como um grande êxito, já que era a economia que mais crescia no continente. Nada parecia prever um desfecho tão desastroso. Por outro lado, quando ele ocorreu, surpreendeu o modo como a governação de Evo foi asperamente criticada a partir de quadrantes ideológicos opostos.
Quando, em 1537, decretou na bula Sublimis Deus que os índios tinham alma, o Papa Paulo III abriu um longo processo histórico. Só 321 anos depois foi eleito presidente de um país latino-americano o primeiro indígena, Benito Juaréz, no México, e 469 anos depois, o segundo, Evo Morales (EM), na Bolívia. Com 62% de população indígena, a Bolívia é um dos países da América Latina mais ricos em recursos naturais e também um dos mais pobres.
O ódio racial contra EM por parte das elites brancas e mestiças, que sempre detiveram o poder, foi evidente desde a primeira hora. Em 2007, estive em Santa Cruz de la Sierra, centro do capitalismo agrário boliviano (com forte presença brasileira), onde vi deputados constituintes indígenas serem insultados e agredidos por grupos de extrema-direita. Para as elites patrimonialistas, deputados constituintes indígenas era algo tão impensável quanto, anos antes, no Brasil, um operário metalúrgico ser eleito presidente do país. Para ela EM era um índio fora do lugar.
Os êxitos e os fracassos O balanço entre os êxitos e os fracassos de EM levará algum tempo a fazer. Mas são inegáveis os seguintes êxitos. Com a nacionalização dos hidrocarbonetos e de empresas estratégicas como a de telecomunicações (Entel), que coincidiu com um período de bonança por efeito do aumento dos preços internacionais de matérias primas, o Estado boliviano saiu da sua condição de mendigo internacional. O investimento público converteu-se na principal fonte de um modelo de crescimento, estabilidade económica e redistribuição elogiado por todos os organismos internacionais. A nova Constituição (2009) trouxe consigo avanços e conquistas fundamentais no âmbito do novo modelo de Estado Plurinacional que incluía o reconhecimento do sujeito “indígena originário camponês” e das autonomias territoriais (autogoverno). Um êxito particularmente notável foi a redução a desigualdade social. A pobreza reduziu-se de 59,9% para 34,6%, enquanto que a pobreza extrema baixou de 38,2 para 15,2%. Para isso contribuíram diversas bonificações destinadas a setores vulneráveis (Renda Dignidade para adultos idosos, Bono Juancito Pinto para crianças em idade escolar, Bono Juana Azurduy para mulheres grávidas). Surgiu também uma nova classe média: as pessoas com rendimentos médios passaram de 3,3 milhões (2005) para 7 milhões (2018). Houve uma redução drástica do analfabetismo, melhoraram os indicadores macroeconómicos (a Bolívia liderou nos últimos anos o crescimento económico na América do Sul), reduziu-se para metade da taxa de desemprego (de 8,1 para 4,2%), aumentou o salário mínimo, a expectativa de vida. Foi notável o investimento público nas infraestruturas (em especial estradas e milhares de obras nas províncias e área rural).
Do mesmo modo que existiram êxitos inegáveis no decurso do Governo de EM, também ocorreram fracassos e erros graves. A prática de um Estado centralista e autoritário ignorou muitas vezes as normas constitucionais, o que levou ao afastamento, cooptação ou divisão das organizações e movimentos sociais. Quando mais se necessitava de organizações fortes e autónomas que vigiassem e preservassem as conquistas, o próprio Estado debilitou-as quer com acordos para cargos e concessões a favor das suas lideranças, quer com decisões que favoreciam as elites económicas, as mesmas que viriam a colaborar na queda do presidente. Um processo semelhante ao que pouco antes sucedera com Lula da Silva no Brasil. A cedência ao modelo económico neoliberal e à consequente prioridade da extração dos recursos naturais foram evidentes em muitas situações, nomeadamente quando impôs, sem consulta prévia, a construção de uma auto-estrada em território indígena (o Parque Nacional TIPNIS) para escoar recursos naturais. Certamente, o erro mais dramático foi a convocatória e o posterior desconhecimento do resultado vinculante do referendo sobre a reeleição (fevereiro de 2016), no qual pouco mais de 51% da população rejeitou a reforma do artigo 168 da Constituição que impedia a possibilidade de uma nova candidatura de Morales. A partir daí ficou evidente que o processo político iniciado por Evo se tornara “Evo-dependente”.
O golpe Se os erros se sobrepusessem aos êxitos, o mais “natural” em democracia seria que EM perdesse as eleições. Não foi isso que aconteceu. A sua queda resultou de um golpe de Estado. Na Bolívia foi ativado meses antes da eleição um plano golpista, com diversos componentes bem sincronizados entre as elites locais e o imperialismo norte-americano. Consistiu num discurso de “fraude eleitoral”, construído antes das eleições, para justificar o desconhecimento da votação caso Evo vencesse. Seguiu-se o motim da polícia e um fraudulento “relatório preliminar” da auditoria da Organização dos Estados Americanos (OEA), que falava de “irregularidades”. Atingiu o seu ponto alto com a intervenção direta das Forças Armadas, que “sugeriram” a renúncia do presidente. Seguiram-se acções violentas contra autoridades e dirigentes do MAS, forçando a sua demissão. Após a renúncia de EM e do seu asilo no México procurou-se uma fachada democrática com a autoproclamação como presidenta, alegando sucessão constitucional, da segunda vice-presidenta do Senado (cujo partido obteve apenas 4% dos votos nas eleições). Com o apoio da Polícia e das Forças Armadas assumiu um mandato carregado de símbolos religiosos conservadores e de revanchismo racista. Entretanto, a violência voltou com os dois massacres (Sacaba e Senkata) produzidos pela repressão militar-policial e certificados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), actos de vandalismo, e persistentes operações de perseguição política e judicial a título de “sedição” ou “terrorismo”.
O retorno à “normalidade” democrática nas urnas é precário e pouco crível. Um retorno que passa pela inabilitação de EM e de Álvaro García Linera, e por um governo de transição que se propõe anular compromissos internacionais (como a saída da ALBA e da UNASUR), privatizar empresas estratégicas, ampliar ainda mais a fronteira agrícola, liberalizar a economia com entrega de recursos naturais segundo a receita neoliberal, mudar massivamente o corpo diplomático e eliminar do horizonte político o sujeito coletivo indígena e nacional-popular, e todas as demandas originadas nas lutas dos povos indígenas (o Buen Vivir, a plurinacionalidade, os direitos coletivos, a democracia comunitária, o respeito pela Terra Mãe).
A intervenção imperial aproveitou os erros internos para neutralizar em mais um país (depois do Brasil e Equador) a influência da China no continente. A rivalidade entre os dois impérios (um decadente e outro ascendente) não conhece regras democráticas. Está em jogo o comando da nova onda de globalização baseada na inteligência artificial e na tecnologia 5G. A China parece por agora melhor posicionada para comandá-la e por isso avança internacionalmente com medidas de incentivo positivo (a nova rota da seda), enquanto os EUA intervêm com medidas punitivas (embargos, sanções económicas, mudanças de regime, contra-insurgência). A fachada multilateral é proporcionada pela OEA, que opera na região como ministério dos assuntos internos dos EUA. Recentemente, o governo de EM subscreveu um contrato com a China para a construção de uma empresa que fabrique lítio metálico com base nas enormes jazidas de lítio na Bolívia, um mineral estratégico para a nova ordem tecnológica. Havia que neutralizar esta rebeldia à sempre vigente Doutrina Monroe (o subcontinente como quintal dos Estados Unidos).
Mas o imperialismo e as elites sabem que há líderes que, apesar de todos os seus erros, conseguem tocar o coração das classes mais empobrecidas, mais humilhadas, mais esquecidas. E que, apesar de todos os seus erros, existe o perigo de que possam regressar. Por isso é necessário mobilizar o aparelho repressivo e o sistema judicial para acusá-los de crimes que os inabilitem politicamente para sempre. Foi o que se passou com Rafael Correa, com Lula da Silva e com Cristina Kirchner (neste caso, sem êxito por agora). Passar-se-á o mesmo com Evo.
As avaliações críticas. Depois da queda do seu governo, as críticas mais contundentes a EM provieram não apenas da direita, como seria de esperar, mas também de setores de esquerda e de feministas brancas e mestiças latino-americanas. Este facto causou alguma perplexidade e também provocou revolta em outros setores da esquerda e do feminismo, sobretudo de movimentos de mulheres indígenas. No calor dos acontecimentos recentes, pensar que depois de 32 mortos e 700 feridos; depois do proclamado triunfo da supremacia branca em versão crioulo-mestiça e da bíblia evangélica frente ao “paganismo satânico” da Pachamama, a terra mãe dos indígenas); depois de mandar que os índios, incluindo a queima da wiphala (bandeira indígena), voltassem os seus lugares de invisibilidade (tal como os batustões na África do Sul do apartheid); pensar depois de tudo isto que haja boas (ou inclusive melhores) condições para construir a democracia indígena de base, parece-me um delírio.
Tenho afirmado que a verdadeira renovação da luta por uma sociedade mais justa e por uma política de libertação para o novo século tem nas lutas das mulheres uma das bases mais consistentes. Argentina, Venezuela e Chile oferecem provas convincentes disto. Mas não restam dúvidas que depois da queda do governo de EM a polémica subiu de tom e o feminismo latino-americano parece hoje profundamente dividido. Deve notar-se que ao longo da última década muitas ativistas indígenas fizeram críticas aos seus governos e fizeram-no sempre de uma perspetiva construtiva. Para me limitar apenas às grandes líderes com quem trabalhei, recordo Nina Pacari, Blanca Chancoso e María Eugenia Choque (hoje presa de modo arbitrário por ter sido presidente do tribunal eleitoral e a correr perigo de vida). Muitas delas mantiveram alguma distância em relação aos feminismos, e recusaram mesmo considerar-se feministas por pensar que essa era uma designação própria de mulheres brancas e mestiças.
Perante o golpe brutal do imperialismo na Bolívia contra EM, a luta mais urgente consistia em defender as soluções democráticas (ainda que desesperadas) propostas por ele e não demonizá-lo como se fosse o único culpado da sua desgraça política. Era mais urgente mostrar que as alternativas de esquerda devem ser encontradas democraticamente dentro do próprio país e de maneira nenhuma ser funcionais ao imperialismo. Pese embora todos os seus erros, o que Evo Morales fez pela dignidade e o bem-estar dos povos indígenas, os mais pobres, mais humilhadas e discriminados do continente, leva-me a estar certo que a história o absolverá.