Nada melhor do que fazer um fim-de-semana em Londres, em visita à família, acompanhado de um livro desejado – de memórias e serena atitude crítica. Entre as deambulações citadinas, as obrigações, as livrarias e tudo o mais, foi muito bom contar com a companhia do último livro de Eugénio Lisboa – Acta est Fabula, Memórias IV, Peregrinação: Joanesburgo, Paris, Estocolmo, Londres (1976-1995). E a verdade é que ao regressar a Londres, sempre recordo os nossos primeiros encontros, há mais de vinte anos. Eugénio Lisboa, cuja amizade se foi reforçando com o tempo, é um peregrino curioso, uma personalidade especial, em quem o conhecimento literário e a vasta cultura são complementos naturais de uma simpatia inesquecível. Conheci-o primeiro, como é óbvio, através da sua obra e em especial da sua relação fundamental com José Régio. Não é, aliás, possível compreender o lugar da “Presença” na literatura e na cultura portuguesa sem conhecer a visão de conjunto, a leitura crítica e o acompanhamento pormenorizado por Eugénio do autor de “A Velha Casa” e da sua geração. E se houve quem o classificasse como presencista, foi certamente por desatenção ou desleitura, já que, admirando Lisboa a personalidade de Régio, possui luz própria, sendo um leitor crítico praticante.
Eugénio é, nos seus ensaios, um extraordinário cicerone da cultura do século XX, sempre capaz de encontrar o singular e o melhor, mas também de descobrir os mais inusitados pecadilhos, às vezes onde menos se espera. Foi este crítico que cedo encontrei e que depois conheci pessoalmente em Londres (como Hélder Macedo). O contacto com a sua personalidade tornou a admiração antiga natural proximidade e especial afeição, extensiva a sua mulher Antonieta… A verdade é que a obra memorialística de Eugénio Lisboa vem trazer-nos a ligação da sabedoria, da cultura e do conhecimento ao humanismo e à independência de espírito (que nos levam a António Sérgio…). A cada passo, se nota, de facto, essa independência crítica que permite reconhecer a importância das suas apreciações e comentários, nunca tributários de qualquer favor, mútuo elogio ou cedência à moda. Estamos perante um crítico fiável, muitas vezes incómodo, mas sempre livre. O problema não está em concordar ou discordar, mas em sabermos que a sinceridade é a fidelidade suprema à busca da verdade e da justeza. Nesse sentido, Eugénio Lisboa cita, a propósito do que viu, com tristeza, em Moçambique, nas “nacionalizações selvagens e desordeiras, anunciadas e prontamente executadas, à ponta das kalashnikovs”, a afirmação de Alfred North Whitehead, o matemático e lógico, amigo de Bertrand Russell: “a arte do progresso é preservar a ordem, no meio da mudança e preservar a mudança no meio da ordem”. Assim, o autor de “Acta est Fabula”, se conhece a história e o género humano como poucos, nunca desiste de fazer a democracia uma questão séria.
O volume agora dado à estampa inicia-se com uma nova partida de Moçambique, depois da independência, desta feita sob a invocação (dramática) de Tennessee Williams: “há um tempo para partir, mesmo quando não há um lugar certo para ir”, com um aceno comovedor inspirado em Robert Graves: “Good-bye to all that”. Estamos perante nostalgia, desprendimento, amargura, mas também a consciência plena de que o melhor seria mesmo partir. Ao longo de toda a obra, vê-se, contudo, que o autor nunca esquece essas raízes fortes e ternas da África Oriental… Se a peregrinação passa por Joanesburgo (onde a memória do Pai fica indelevelmente lembrada), por Paris (sem festa nem companhia…), por Estocolmo (“um controlo suave, apoiado na abundância e na segurança”) e sobretudo por Londres, por entre as estadas portuguesas, a verdade é que Eugénio liga sempre o seu ofício ao gosto da vida e das pessoas. O livro deve ser lido, pois, atentamente, contando com partes suculentas de um diário inédito e reflexões atualíssimas. Muitas vezes, deixa-nos mesmo ver o avesso das coisas para que entendamos melhor a superfície real. Há episódios tocantes, como o da terrível destruição da valiosa papelada que estava na garagem na avenida Massano de Amorim, ou o da chegada ao aeroporto de Mavalane, quando os zelosos funcionários moçambicanos se negaram a tratar Eugénio como estrangeiro, apesar do passaporte português. “Havia muita gente boa naquela boa terra moçambicana, mas, infelizmente, não era necessariamente essa que detinha nesse momento as rédeas do poder”. E entre as referências sentidas ao longo do volume, temos a recordação de personalidades marcantes como Rui Knopfli, Fernando Namora (criador da insubstituível Biblioteca Breve do velho ICALP), David Mourão-Ferreira, Fernando de Mello Moser, Luís Amaro, Alberto Lacerda e Luís de Sousa Rebelo (que deveria ter merecido outras atenções, que não teve).
Em Londres, o memorialista descreve-nos, com sentido prático, a situação um pouco peculiar do diplomata: “vive dentro da Embaixada, onde fala português com os colegas portugueses e lida com assuntos que dizem respeito a Portugal. E comunica todo o tempo com Lisboa. Mas, lá fora, é Londres com a sua vida própria, os seus valores, os seus sons, os seus ritmos, as suas atrações e repulsões. Há o teatro, os concertos, os pubs, os museus, o Tamisa, os parques, os scones, a língua… Estamos e não estamos instalados, somos e não somos londrinos, somos e não somos portugueses”. Há quem pretenda dizer que estamos desenraizados, eu prefiro sustentar que fiquei pluralmente enraizado. Fui gostando e não gostando: nem tudo (…) é admirável”. A cada passo sente-se o domínio do tempo, com uma fantástica capacidade de contar os pequenos nadas de que a vida é feita – em especial a paciência para lidar com a estupidez, com os empatas e com os burocratas, apesar das boas surpresas. E, com o humor, que nunca deixa, lembra G. B. Shaw a dizer que todos os prazeres do cidadão inglês podem ser partilhados com o seu cão e recorda H.G. Wells a invocar a lenta passagem da compreensão à ação na Albion quanto às mudanças necessárias… Ao meditar sobre a cultura, porém, arremete justamente contra os nossos que acham que é um “meio acessório chic, uma espécie de flor na lapela que dá jeito, mas não tem propósito de maior (…). A prova do bolo está em comê-lo, ou seja, no dinheiro que estão dispostos a investir nela (…) (que) foi sempre uma autêntica miséria”. Longe do elogio, temos sempre a broca crítica, de quem se define assim: “Sou refilão (…) mas não sou ingrato e desprezo a ingratidão. Simplesmente o formato da minha gratidão não se compadece com curvar o espinhaço, para tomar do Eça, a contundente fórmula (…). As minhas admirações foram sempre críticas, que é para isso que serve a cultura…”.