Mr. Titular
– Qual é o seu nome? – perguntaram-me a apontar para a página do passaporte onde a informação saltava à vista.
– É este – e apontei para o sítio onde ele estava escrito, debaixo da palavra “titular” (do passaporte). O homem, do outro lado do balcão, fazia as honras à burocracia, preenchia em árabe o papel e o bilhete que me levariam de Aqaba, na Jordânia, para o Egito.
Atravessei a fronteira com um primeiro nome que não me pertencia: Mr. Titular Cruz.
Maturação do tinto
Szépasszony-völgy, que significa “vale das belas mulheres”, estava, como o nome indica, repleto de homens a beber vinho enquanto alguns ciganos tocavam e cantavam. Enterradas na geografia, como tocas de animais, inúmeras adegas permitiam provar e degustar, grátis, o melhor vinho da região: O célebre egri bikavér, um vinho com fama de ter ajudado os húngaros contra invasões militares, um vinho temperado com sangue de boi.
Depois de uma noite bem passada nesse vale de nome auspicioso, decidi levar uns litros de vinho, do tinto, para partilhar com amigos. Durante semanas viajei com uma mochila às costas e um garrafão de egri bikavér na mão. Andou comigo como se fosse um cão pela trela. Quando chegou, não era somente um vinho, era um vinho que havia atravessado vários países, e não sei se há algum casco de carvalho capaz de envelhecer um tinto como as viagens sabem fazer. Creio que a qualidade do vinho depende sobretudo das histórias que ele nos faz contar à mesa.
História de um porco selvagem
Numa fazenda em Aquidauana, onde passei uns meses graças à hospitalidade de M. e respetiva família, havia um porco selvagem, grande e gordo. As pessoas, quando visitavam a fazenda, não saíam do carro, com medo, até que alguém descansava o visitante: é manso, o porco. E era realmente. Chamava-se JR e tinha sido criado por uma cadela preta, de pelo curto, ali mesmo na fazenda. Por isso, portava-se como um cão, julgava-se cão, dormia à nossa porta, rebolava com festas, deitava-se com as patas para cima para que lhe fizéssemos cócegas na barriga. Dava-se muito bem com a sua mãe cadela, adormeciam juntos, corriam juntos e brincavam juntos.
Quando chegava um carro, JR corria com os outros cães atrás do veículo; quando era preciso apanhar uma galinha, JR corria com os outros cães atrás das galinhas; e quando se soltava um cavalo, JR corria com os outros cães para o voltar a pôr no lugar. Foi exatamente por isso que um dia levou um coice que lhe partiu o maxilar inferior, com sequelas para o resto da vida. Um cavalo, parece-me a mim, não respeita da mesma maneira um cão que não consegue ladrar.
Num bar em Dubrovnik, uns anos depois, entre copos de cerveja e jazz, conheci um ex-condutor de tanques, que se gabava de algumas coisas sem qualquer relevo, como, por exemplo, a gravata ser invenção nacional – a palavra gravata é corruptela de croata, disse-me ele -, enquanto largava um ou outro comentário homofóbico, entre dentes, sobre o dono do bar, um velho músico de boina e barba branca. E dizia em relação aos sérvios: Eles são ortodoxos, nós somos católicos romanos. Como é que é possível entendermo-nos?
Contei-lhe a história de JR, para dar o exemplo de que até animais tão diferentes, como um porco selvagem e uma cadela, podem criar laços muito profundos, de verdadeira família. E ele explicou-me que isso acontecia precisamente porque eram animais, acrescentando: os animais não pensam.