A edição número 19 da KINO – Mostra de Cinema Alemão fechou com o aclamado Große Freiheit de Sebastian Meise, que mereceu uma sala bem composta – embora não esgotada. Mas, como não só de cinema se fez esta festa da cinematografia germânica, o JL foi ver e escutar a conferência “In Zukunft – Futurologia Cinematográfica”. Inicialmente marcada em regime presencial, foi posteriormente reagendada para formato digital, ficando disponível em podcast no site do Goethe-Institut Portugal. Devido a este modelo sem imagens, revelou-se difícil destrinçar a autoria das declarações de cada um.
Com moderação das curadoras da KINO Teresa Althen e Susana Santos Rodrigues, o mote da conversa incidiu sobre o futuro do cinema, assim como o futuro da humanidade narrado pela arte cinematográfica. O debate contou com a participação de Dennis Stormer e Marisa Meier, co-argumentistas do filme Juventopia (entre os exibidos no festival); Fernanda Polacow, argumentista do filme Mosquito; Welket Bungué, protagonista do filme Berlin Alexanderplatz; e Nuno Bernardo, realizador de O Diário de Sofia e Gabriel.
IA: aliado ou adversário?
A inteligência artificial acabou por ser o tema dominante da conversa. Se, por um lado, os algoritmos e as realidades alternativas reforçam a necessidade de uma “produção colaborativa”, por outro lado, levantam desafios e questões de ordem ética. Uma das quais prende-se com o facto de o regime de propriedade dos algoritmos estar restrito a “meia dúzia de génios” que, em certa medida, acabam por condicionar o destino da humanidade. Na opinião dos oradores, a IA tem mais perigos e ameaças do que propriamente potencialidades. Não negam a democratização do cinema trazida pelas plataformas de streaming, mas consideram que estas corroem a experiência em sala e são espaços de expressão da normatividade habitual, impedindo o espetador de contactar com obras surpreendentes ou fora do seu padrão de gosto. A certa altura, chegou-se a um razoável consenso de que seria benéfico as plataformas de streaming terem uma espécie de “chatroulette” (expressão de Marisa Meier) que quebrasse o algoritmo e forçasse o espetador a visionar uma obra deslocada dos seus referentes. Outro problema das plataformas é a profusão existente no mercado atual. A quantidade impede, por razões de custo, que o espetador subscreva todas as propostas e acabe por optar pelas de maior dimensão, por possuírem um catálogo mais numeroso. Contra esta crescente asfixia dos mercados de nicho, a única resposta, entre os presentes, pareceu ser a insistência na continuidade: isto é, a interseção de perspetivas, nacionalidades, ideologias e culturas como resposta àquilo que se denominou “fórmulas feitas como máquinas de rechear salsichas” que reproduzem e retomam estruturas normativas, racistas, machistas, etc.
Numa edição em que o destaque ao cinema no feminino foi notório, esta desconfiança face ao algoritmo só pode ser vista como natural. A tensão entre realizadores e algoritmo afigura-se como inevitável e não é propriamente uma discussão nova, mas apenas uma nova roupagem da velha censura económica que sempre assombrou artistas ao longo dos tempos. No fecho deste tópico, os oradores concordaram que os algoritmos acabaram por consumar essa tensão ao exercerem o papel de ‘descuradores’, quer dizer, entidades (incorpóreas) que desencaminham o espetador das propostas mais arrojadas e surpreendentes, levando-o a presumir uma ilusão de escolha, embora restrita a interesses prévios e também, claro, aos interesses económicos dos distribuidores. Nesse sentido, esta curadoria não humana surge em cena para contracenar com a curadoria humana dos festivais de cinema. Se, no primeiro caso, a estabilidade pode levar ao aborrecimento a médio-prazo, no segundo, propostas fora da caixa podem não agradar ao público menos eclético.
Juventude inquieta
Sendo este um festival que deu destaque a jovens autores, o outro subtema da conferência recaiu sobre as novas gerações de espectadores, muitas vezes olhadas com condescendência e paternalismo. A juventude sofre de uma “nostalgic view of the future” (palavras de Welket Bungué), que se pode entender como um sentimento de desorientação profunda perante uma clivagem na ordem mundial a que ainda terão de assistir ao longo das suas vidas, sem que se vislumbre uma solução, quer individual, quer coletiva, para mudar o rumo das coisas – e com a permanente ameaça das utopias e distopias. E é a partir desse sentimento de desconexão que, acredita o painel, se pode alicerçar a consolidação e maturação do cinema contemporâneo feito a pensar num público jovem.
Uma coisa é certa: se há 80 anos líamos em Walter Benjamin uma crítica feroz ao cinema como arte das massas e da futilidade sem substância histórica, a verdade é que essa regressão, nessa perspetiva, se acentuou no século XXI. Com a capacidade de concentração ainda mais reduzida, a longa-metragem, outrora símbolo da cultura de massas, corre o risco de se revelar desadaptada às valências de um novo público, sedento de produtos curtos, de consumo rápido e mensagem moral de fácil assimilação – como no passado era visto o cinema em relação, por exemplo, ao romance.
Contra fórmulas que expressam um falso novo, pode estar na reinvenção do conceito de comunidade uma via anticoagulante para encarar o futuro do cinema.
Uma nota breve sobre Große Freiheit
O filme que encerrou esta edição veio consolidar a temática em que a curadoria apostou para este ano. Galardoado com o prémio do júri em Cannes na secção Un Certain Regard, a longa do austríaco Sebastian Meise retrata um contexto que não é, à primeira vista, facilmente relacionável. Porém, ao longo do filme, essa identificação afigura-se inevitável. Hans, homossexual vítima do holocausto, enfrenta várias vezes os horrores da prisão, devido à proibição dessa orientação sexual na Alemanha Federal do pós-guerra. No cárcere conhece Viktor, com quem, inicialmente, tem uma relação hostil. À dominância de um único espaço físico ao longo de toda a fita contrapõe-se uma profunda e complexa problematização sobre o conceito de liberdade, quer a mais visível, quer a menos identificável. Uma obra sobre a libertação sexual que começa a irromper no final dos anos 60 mas, principalmente, sobre os limites da independência humana. Cada um de nós terá a sua perceção sobre o que significa ‘liberdade’, e essa perceção pode soar mais ou menos distorcida – tal como o percurso de Hans comprova. Contudo, ela constitui um valor, por reivindicação ou negação, incontornável na nossa espécie. E é precisamente em cima dessa ambivalência que Meise engendrou as cenas finais do filme. Não fica claro se Hans força o regresso à prisão por entender que, afinal, não há liberdade sem amor; ou se conclui que, por força das circunstâncias, andou até então a confundir liberdade com libertinagem e libertarismo. Enquanto conceito mutante, liberdade pode, efetivamente, ser prisão, como canta Tiago Bettencourt.