JL: Neste filme vai atrás de uma língua. Que língua é essa?
José Barahona: O nheengatu é uma língua mestiça, de miscigenação, tal como o próprio Brasil e o seu povo. É a génese da sociedade brasileira. Foi uma língua inventada depois de 1500 por portugueses e brasileiros. Quando os portugueses chegaram à costa do Brasil eles aprenderam, de forma muito tosca, o tupi, a língua indígena que ali era mais falada. Ao fazerem isso começaram a misturá-la com palavras portuguesas, até porque existem alguns conceitos e objetos para os quais não existiam palavras indígenas pois estes não os conheciam. À medida que os portugueses foram avançando para o interior do Brasil e contactando com outras etnias foram misturando vocábulos de outras línguas indígenas. O nheengatu foi uma língua de colonização, de contacto. Esta língua geral chegou até a Amazónia e foi uma das línguas mais faladas até o Marquês de Pombal perceber que tinha de a banir se queria manter o controle cultural e estratégico do Brasil. No entanto, no extremo norte da Amazónia, na região do Alto Rio Negro, ela ainda se mantém viva e é uma das línguas mais faladas por povos indígenas, que inclusive perderam a sua língua mãe e a adotaram como forma de identidade cultural. Assim, passou de língua de colonização para língua de afirmação cultural indígena e de resistência.
O que o levou a seguir esta língua num filme?
Quando percebi a relação da língua com a nossa História comum, este tema pareceu-me ideal para um filme. Há mais de dez anos que trabalho entre o Brasil e Portugal, perseguindo temáticas que nos uniram no passado e unem no presente, tentando entender o que sobra hoje da nossa presença e como se deu a génese desse país continental que é o Brasil. O nheengatu é um reflexo daquilo que é a história do Brasil, daquilo que o Brasil é hoje em dia, um país com influências várias, mas que as soube transformar numa identidade cultural muito própria, nova e muito forte.
Falar nheengatu é um ato de resistência? Como lidam os índios com a língua?
É, claro, um ato de resistência uma vez que esta língua se transformou numa nova língua indígena e que foi adotada por vários povos. Alguns deles chegam mesmo a priorizar o nheengatu em relação à sua língua original. Outros perderam a língua mãe e falam nheengatu como afirmação da sua identidade. Afirmar a identidade cultural é um ato de resistência perante as grandes ameaças a que estão sujeitos estes povos.
Quais foram as suas opções estéticas?
O filme tem uma linguagem bastante marcada, ou não fosse um filme que aborda uma língua “mestiça”, e a linguagem do filme reflete isso mesmo. Há uma câmara principal (a que chamei câmara 1), que é a câmara tradicional do documentário, que filma aquilo que vemos, o ponto de vista onde colocamos o espectador, em planos fixos, muito cuidados e estudados ao nível dos enquadramentos e da luz. Há depois uma outra câmara, a 2, sempre operada à mão, imprecisa, que mostra os bastidores, a filmagem em si, quase um making of, e isto é diferente no documentário, pois constrói uma linguagem de campo-contra-campo, presente no cinema de ficção, mas que não costuma existir no documentário. O documentário raramente mostra o que está fora de campo, o outro lado. O reality show faz isso de uma forma bastante vincada, mas não o documentário, embora cada vez mais tudo isto se contamine.
E o uso do telemóvel na vertical?
As imagens feitas por telefone na vertical foram uma tentativa de me aproximar mais da realidade. Resolvi pedir aos intervenientes no filme que nos dessem o seu ponto de vista entregando-lhes um telefone-câmara que eu recolhia ao fim do dia. É, por isso, um filme filmado por todo um conjunto de pessoas envolvidas nele e não apenas pelo operador de câmara.
O filme começa por ser a busca pelos falantes de uma língua, mas acaba por se tornar num retrato dos índios da Amazónia…
Quer na ficção quer no documentário, o tema aparente de um filme é sempre um pretexto para conhecer pessoas. Nos meus filmes anteriores mais ligados ao documentário havia sempre um fio condutor da narrativa ficcional que servia de pretexto. Aqui, a língua não é uma ficção, mas podia ser. A língua é importante, mas mais importante é o que ela significa para as pessoas que a falam.
Há uma constante luta pela sobrevivência contra a aculturação? Estas comunidades estão ameaçadas? Qual o estado das coisas atendendo também à atual conjuntura política do Brasil?
As tradições hoje em dia são resgatadas porque muitas delas já se perderam, assim como muitas línguas também se perderam. É um modo de vida que em grande parte já não existe. Os índios não andam nus na floresta a caçar e a pescar. Eles não fazem os seus rituais, nem se vestem de forma tradicional a não ser em situações especiais ou de festa, tal como nós nas nossas festas folclóricas. Mas eles ainda vivem na floresta, ainda se deslocam pelo único meio de transporte ali possível, que é o barco através do rio. Ao mesmo tempo, ambicionam também ter o último modelo de telemóvel, energia elétrica e o acesso à saúde e educação do mundo do homem branco. É complexo. Eles não querem mais viver sem as comodidades do homem branco. Mas também querem preservar a sua identidade. A língua, sendo parte da cultura de um povo, é parte da equação: ela pode ajudá-los a lutar para se manterem e manterem de pé a floresta. E isso é benéfico para todo o resto do mundo. J