Os Conselhos da Noite tem sido apresentado como o primeiro filme totalmente rodado em Braga, o que poderá até não ser totalmente verdadeiro, mas não deixa de ser significativo, porque é uma obra que faz de Braga a personagem principal. Com algum esforço poderíamos olhar para o objeto, em termos etnográficos, como uma sinfonia moderna da cidade, à luz das obras primas de Vertov e Manoel de Oliveira (Douro, Fauna Fluvial), só que os artefactos são diferentes. É mais uma ópera rock (ou punk) do que uma sinfonia. Nitidamente, José Oliveira procura um pretexto para mostrar a sua cidade, mais do que quer contar uma história que o leve lá.
Tal como Longe, a sua curta que esteve em Locarno, com uma interpretação que preenche o ecrã de José Lopes (ator recentemente falecido), Os Conselhos da Noite é um filme deambultaório. Faz-nos percorrer a cidade, numa espécie de roteiro turístico alternativo, cheio de memórias, afetos e desamores, ao mesmo tempo que a personagem, porventura um alter-ego do realizador, tenta se encontrar ou se desencontrar consigo própria. Ou talvez faça os dois movimentos ao mesmo tempo, de aproximação e repulsa, o que a torna mais interessante, como parte de um processo anticatártico. Em muitos momentos, parece aproximar-se dos sítios, dos lugares da memória, apenas com a intenção consciente ou subconsciente de os destruir. A personagem de Roberto, de resto, caracteriza-se por um sentido cáustico, por uma amargura persistente e por vezes irónica, que lhe conferem até algum charme. Nesse aspeto é quase um clown, num sentido nobre, narrativo e cinematográfico do termo, na linha, por exemplo, de João César Monteiro. Mas, apesar dos seus bons momentos, o filme não opta por levar tão longe a estrutura de episódios como na trilogia de Deus, nem a personagem, apesar de alternar entre a apatia e a descrença no mundo (e em si próprio), chega a tornar-se um credível desvio social. Dá sempre a ideia que o tal sentido cáustico e autodestrutivo faz parte de um momento passageiro e que aquela viagem, de fora para dentro, é de modo camuflado uma jornada regeneradora (mais do redentora), necessária para avançar para nova etapa. O caos interior não é totalmente irreparável, apesar de persistente.
O filme tem momentos muito bem conseguidos, como a cena no centro de emprego ou alguns dos diálogos com Adolfo Luxúria Canibal, no papel de um veterano cineclubista. Falta-lhe apenas um quê de carisma na personagem principal, que lhe dê a força dos grandes anti-heróis, e do seu espanto perante o mundo, como João César Monteiro ou Elia Suleiman (para não falar de Chaplin ou Buster Keaton). Alguém cujo rosto nos confiasse um mundo, como talvez tivesse ao alcance de José Lopes (como se viu em Longe). Mas isso seria um retrato de uma outra geração.
Do filme, o essencial que nos sobra é mesma a cidade. Um retrato fora dos clichés de uma cidade em mudança, entre a ruralidade provinciana e conservadora do passado e a brutal escalada para a modernidade possível. José Oliveira, realizador a seguir, tem novo filme preparado para o DocLisboa (decorre no início de 2021). Guerra é a última aparição no cinema de José Lopes, e conta com as presenças de Luís Miguel Cintra e o Diogo Dória. J M. H.
Os Conselhos da Noite
de José Oliveira, com Tiago Aldeia, Adolfo Luxúria Canibal, Marta Carvalho