Quando se cumpre um grande sonho sobra apenas uma sensação de vazio. Não foi o caso. Porque uma vez realizado, só sonhava em repeti-lo até à exaustão. E assim vencer o sonho pelo cansaço.
Todos temos fantasias. A minha não era melhor nem pior do que outras. Sempre me tinha imaginado a fazer amor ao som de The Mercy Seat, de Nick Cave & the Bad Seeds, a primeira faixa do álbum Tender Prey, cuja edição em vinil mantenho emoldurada na parede da sala-de-estar. Convenhamos que a letra não é particularmente romântica – fala sobre um tipo que afirma não ter medo de morrer, mas depois descobre-se que é mentira e que ele se borra de medo como todos os mortais. Mas o que mais me fascina é a cadência. A música está construída em crescendo, cada vez mais rápida e intensa, até chegar a uma explosão de euforia…
Foi este o sonho que se cumpriu naquele dia com a Amanda. Ela também gostava de Nick Cave – nem eu suportaria andar com uma miúda que não gostasse -, contudo não partilhava, na altura, do meu intransigente fanatismo, apesar de se vestir de preto, e ter o hábito de se pintar de negro por baixo dos olhos, realçando as olheiras, já por si carregadas. Mas a Amanda era mais da cena gótica. Grupo preferido: Sisters of Mercy (como é possível que Sisters of Mercy seja o grupo preferido de alguém?).
Eu lá a convenci, sem muito trabalho, diga-se, a ajudar-me alcançar aquela quimera que perseguia desde a adolescência. E logo ao primeiro encontro. Como o fiz não sei bem. Digamos que ela simplesmente se deixou contagiar pelo meu entusiasmo.
O ensejo teve questões logísticas bem complicadas, pois a sincronia com a música, aplica-se apenas à parte da penetração, ficando por resolver os preliminares. Das duas uma: ou escolhia um tema introdutório, talvez, Deanna (dava mais jeito Amanda) ou a versão de In the Ghetto, de Elvis Presley, ou simplesmente accionava o replay e ouvíamos The Mercy Seat as vezes que fossem necessárias.
Em qualquer uma das opções devia encontrar uma forma de contornar o evidente perigo de tudo parecer demasiado plástico e calculado, o que podia tornar a relação fria ou mesmo frígida.
Uma decisão impunha-se. E, por sorte, a solução que me ocorreu até tinha o seu quê de romântico. Mal entrou em casa, para seu grande espanto e desvanecimento, a música que a Amanda ouviu foi Dominion/Mother Russia, dos Sisters of Mercy – do álbum Floodland, que é o único que possuo da banda britânica. Ficou assim rendida aos meus encantos de jovem cavalheiro. Estava preparada para copular ao som de Nick Cave e eu, num acesso de ternura, trocara o músico australiano pela sua banda preferida. Um golpe de génio. A partir daí, como se calcula, submeteu-se aos meus braços, disposta a tudo. Desdobrámo-nos entre beijos, abraços, trincas, enquanto freneticamente arrancávamos os corpos da roupa. Os Sisters lá iam cantando, em tom grotesco: “Some day, some day, some day -dominiom”. Uma simpática primeira parte para a melhor banda sonora da minha vida.
Tinha planeado tudo ao milímetro, fazendo mesmo alguns ensaios. Nada podia correr mal. Os Sisters of Mercy tocavam no tijolo e o Nick Cave estava apenas à espera de um toque no comando para soar na aparelhagem.
Assim fiz a passagem da forma mais elegante possível. E comecei a comê-la ao som daquela estranha entrada. “It began when they come took me/ from my home/ And put me in Dead Row, / Of which I am nearly wholly innocent, you know. / And I’ll say it again/ I..am..not..afraid..to..die.”. Eu ia crescendo ao lado da voz do Nick, cada vez mais rápidos. Não precisava de pensar para seguir o ritmo. A sintonia era natural quase biológica. Ela partilhava aquela beleza única, aquele ex-líbris do post-punk. Eu sabia-o pelos seus gemidos que, apesar de se tornarem progressivamente mais altos, não estragavam a música, pelo contrário até enfatizavam o discurso. Os três transformámo-nos num só. Eu aumentava de velocidade a cada mudança de andamento, tentando, ao mesmo tempo, conter-me, para não antecipar o grandioso epílogo. Até que o momento chegou, o pico da intensidade, a voz do Nick Cave a cantar gritando, naquele final apoteótico – “An eye for an eye/ And a truth for a truth/ And anyway I told the truth/ But I’m afraid I told a lie” – e eu, sem aguentar nem mais um segundo, gritei também numa explosão de amor e de música, a que ela respondeu, com um esgar de prazer, entre aquelas olheiras borradas debaixo dos olhos. Comunguei com o Nick Cave um religioso e interminável orgasmo. E assim que me vim, ele calou-se, dando lugar ao habitual silêncio pós-coito.
Eu e a Amanda ficámos acamados, um ao lado do outro, saboreando e tentando recuperar daquele luxuoso momento de prazer. Ela foi a primeira a dar sinal de vida. Esticou o braço até à mesa-de-cabeceira, pegou no maço de Português Suave, recostou-se nas costas da cama e acendeu um cigarro. Deu duas ou três baforadas seguidas. Eu, ainda mal recomposto, roubei-lhe uma passa e, altivo, perguntei:
– Então, que tal?
Ela respondeu:
– Não foi mau…. Pena que a música seja tão curta.