Ursula Meier, a premiada e estreante realizadora suíça de Home, uma espécie de road movie ao contrário, mas que também é um filme de amor, mas que também é um filme de guerra… em discurso directo no FINAL CUT
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Sabemos que, no cinema (e nas artes em geral), é corrente aproveitar-se toda a carga metafórica de alguns elementos, como as pontes, a água, a lua, etc? A Ursula conseguiu encontrar uma metáfora absolutamente poderosa numa auto-estrada. Porquê utilizar uma auto-estrada para contar a história de uma família ?
URSULA MEIER
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Home
é antes de tudo uma fábula contemporânea sobre a família. A abertura da auto-estrada, metáfora do mundo que escorre por entre as janelas dessa família ? um mundo barulhento, perigoso, poluente, ameaçador ? age como um lobo no seio familiar e revela as suas disfunções e maleitas profundas. A vida, a poucos metros das viaturas, dos camiões, das caravanas, das motos, – cujo o número não cessa de aumentar dia após dia para atingir o seu climax nos engarrafamentos de partida para férias, e num barulho cada vez mais ensurdecedor – torna-se, pouco a pouco, insustentável para essa famíla.
No início do filme, a imagem é muito colorida (o verde da relva, o azul do céu, o fato de banho e a toalha colorida da Judith), mas depois, à medida que a família se vai retirando para o interior da sua casa e se começa a emparedar, a imagem torna-se monocromática, quase a preto e branco. Há cada vez menos luz solar, esta é substituída pela luz artificial dos néons que Michel instala por toda a casa. Então, passa a haver, entre o som e a imagem um efeito de vasos comunicantes: quanto mais há silêncio na casa menos há luminosidade e espaço por causa das camadas e camadas de tijolos colocadas por Michel. Eu e a directora de fotografia, Agnés Godard, trabalhámos com base em fotografias. Eu andava fascinada pelo trabalho fotográfico de Jeff Wall, em particular pela foto
Insónia
, onde se vê um homem que dorme sobre a mesa da cozinha. O decorador acabou por construir uma cozinha igual à da foto, que corresponde a uma cozinha dos anos 50. “Home” é antes de tudo uma fábula, e eu não tinha vontade de situar nem de datar o filme. É uma filme contemporâneo, que se poderia passar nos anos 80, e poderia ser localizado em França, na Bélgica, na Suiça, ou na Alemanha? Pouco importa. É essa mistura de épocas que me interessa. Quanto aos figurinos da personagem de Isabelle Huppert surgiram de uma vontade de que cada roupa contradissesse a precedente: numa cena ela está vestida como uma “dona de casa”, na cena seguinte tem um visual mais rock, noutro mais adolescente? Foi uma forma de criar um enigma em redor das personagens, sobre as quais não sabemos grande coisa, nem o seu passado, nem em que trabalham? Ainda que o filme se passe no campo, é interessante vesti-los como citadinos, pô-los de sapatos de salto alto para atravessar a auto-estrada. É uma maneira de fazer ver ao espectador que esta família vive afastada do mundo, não por amor ao campo mas para encontrar um certo equilíbrio e uma felicidade perdida.
Judith protege-se desta família de fusão com a sua música Heavy Metal, que lhe serve de filtro entre ela e o mundo, um filtro sonoro, mas que funciona às mil maravilhas, porque a sua família deixa-a em paz. Judith é uma personagem imóvel, limita-se a ficar deitada no jardim a apanhar banhos de sol e a cumprir um número mínimo de tarefas. Eu disse à actriz que interpretou essa personagem que ela tinha qualquer coisa de
À Espera de Godot
, de Samuel Beckett. O seu comportamento desajustado e doentio, criado desde o princípio do filme, não é mais do que, na verdade, o primeiro sintoma visível da disfunção familiar. Com efeito, ninguém lhe diz: “Mexe esse rabo, vai procurar trabalho! Põe a música mais baixo!”.
No fim do filme, mudamos radicalmente de ponto de vista. Deixamos de ter o ponto de vista da família que avista a auto-estrada, passamos para um travelling final, com aquilo que temos por hábito ver, quando viajamos de carro pela auto-estrada. Finalmente, o movimento? Parece que só no final do filme o
road movie
poder começar ?
Ritmado pelo movimento incessante do fluxo e refluxo dos carros e camiões na auto-estrada,
Home
não é um road movie mas a sua imagem inversa e negativa. Há imenso movimento em
Home
mas nunca se viaja para lado nenhum. A viagem é para os outros, para aqueles que desfilam constantemente aos olhos da família. Para esta, a vida não é
on the road
, mas à beira da estrada.
Home
é uma espécie de expedição sem deslocação. É uma viagem interior, uma viagem mental. É somente no fim do filme que o
road movie
pode começar?