… e as ilusões, as almas, os espíritos, o ilusionismo, uma das obsessões de Woody Allen, muito manifesta no filme nº 46, num duelo amoroso entre magia e intrujice
Ana Margarida de Carvalho
Ao longo de meia centena de filmes, a magia têm sido muitas vezes satélite do planeta Allen. Fascina-o, disse em entrevistas. Aprendeu truques, foi mágico amador, fartou-se de ler na juventude sobre Houdini e ilusionistas famosos dos anos 20 e sobre a vaga de médiuns místicos e intrujões que tentavam extrair dinheiros da ingenuidade e credulidade alheia e, no fundo, roubavam clientela aos mágicos profissionais e seus honestos e virtuosos truques. Foi daqui que partiu a ideia de Magia ao Luar (estreia-se hoje, quinta, dia 4): um mágico materialista, céptico, snob e mundialmente reputado (Colin Firth) vai tentar desmascarar uma jovem espírita (Emma Stone) que “comunica com o além” e actua junto de milionários na Côte d’ Azur. Claro que, no fim, ele vai apaixonar-se por ela – não fosse esta uma comédia romântica. Ou melhor: no fim, ele vai apaixonar-se pela ilusão- não fosse este um filme de Woody Allen, aquele que uma vez disse “a realidade é muito maçadora, mas ainda é o único sítio onde se pode comer um bom bife”.
O filme começa com um olho de elefante, aquele que o ilusionista Wei Ling Soo (o nome artístico do protagonista) fará desaparecer em palco. Mas, na verdade, já havia começado antes, com os famosos genéricos, sempre fundo negro com letra branca, fonte Windsor e a música, Cole Porter (“You Do Something To me”). E aqui quase que já estamos conquistados, gratos por esta obstinação do realizador, de 78 anos, que teima em escrever e realizar um filme por ano e faz-nos padecer do “síndroma Cecília” (Rosa Púrpura do Cairo), de ter vontade de entrar para dentro do ecrã. É já uma espécie de regresso a casa, de nostalgia por antecipação.
Para além dos diálogos, sempre de uma argúcia e inteligência rara, da fotografia, da música (jazz dos anos 20, de que ele tanto gosta), Woody Allen, mesmo nesta comédia de uma sustentável leveza, conhece todos os truques. E o cinema também é isso, uma ilusão, um faz de conta, uma magia. E as praias pedregosas do sul de França (estafadas de comparecerem em tantos filmes) tornam-se outra vez encantadoras. E Colin Firth até parece um actor fantástico e Emma Stone deslumbrante.
Orgulho e Preconceito
O mágico é uma espécie de Professor Higgins. Depois de cortar mulheres às postas e de vários desaparecimentos, exibe o seu mau génio nos bastidores, e desanca as partenaires. Pessimista, presunçoso e genial. Já num bar dos anos 20, em Berlim, com a própria Ute Lemper a cantar, há-de citar Nietzsche, Hobbes, afirmar o seu racionalismo e falar do charme de alguém como de “uma epidemia de febre tifóide”. Aqui surge um dos temas eleitos de Allen, que tanto indigna e indispõe os americanos (e a respectiva crítica cinematográfica e toda a sua clonagem europeia). É que o protagonista não é “ferozmente ateu”, ele é “infelizmente ateu”: um ser neurótico, sempre a pensar que nada vale a pena, centrado na sua insignificância perante os problemas insolúveis e aterradores do universo. Porque não há nada para além disto, um pouco de som e de fúria, tudo o resto é inexistência. E silêncio. Quando num momento de fraqueza, o o rude mágico admite que “aquela cigana americana” pode ter poderes sobrenaturais e comunicar com o além, sente-se invadido de felicidade. Se a vida é mais do que “apenas isto”, ele pode vivê-la pacificamente, livrar-se das angústias, ansiedades e dúvidas (que são sempre as do próprio Allen) e curar-se do seu pânico existencial. Afinal, “porque se daria Deus a tanto trabalho se tudo se reduzisse a nada?”.
Entretanto, a médium, que tem sempre à perna um apaixonado milionário, que lhe faz serenatas de ukulele, e promessas de festas sumptuosas e viagens estupendas em não menos estupendos cruzeiros, começa a interessar-se, qual Elisa Doolittle, por aquele ser grosseiro, sarcástico e cáustico que ironiza quando ela encena as suas “vibrações mentais”. O filme há-de ter dois pontos de viragem, um acidente de carro, uma tempestade, um baile, uma conferência de imprensa, uma operação cirúrgica, umas misteriosas pérolas, um observatório astronómico que descobre o tecto com vista para o infinito. Mas o mágico sabe que quando acordar da fabulosa ilusão, a tenebrosa cortina da realidade cairá de novo sobre ele. Entre a verdade e a diáfana ilusão, o céptico escolhe a ilusão.
Caixa
Nada na Manga
Na cinematografia de Woody Allen são recorrentes as referências à magia e os personagens ilusionistas.
– Náufragos de Édipo (1989) – Inserido na longa Histórias de Nova Iorque, co-realizado por autores como Francis Ford Coppola ou Martin Scorsese, Woody Allen filma e interpreta a história de um filho muito embaraçado, cuja mãe se some na caixa de um ilusionista e reaparece depois a pairar nos céus de Nova Iorque e a cometer inconfidências.
– Maldição do Escorpião de Jade (2001) – É através da magia, nomeadamente da hipnose que um mágico burlão tenta dar um golpe perfeito usando para isso um investigador de uma companhia de seguros (Allen) e a sua chefe e rival (Hellen Hunt)
Scoop (2006) – É dentro da caixa negra de um ilusionista (o próprio Allen), durante um espectáculo em Londres, que a estudante de jornalismo (Scarlett Johansson) entra em contacto com um repórter morto que lhe desvenda um crime, que será o seu furo jornalístico. É um dos grandes papéis cómicos de Woody Allen do século XXI