Quando sai para renovar as moedas no parquímetro, as muito discretas senhoras da mesa ao lado desfiam elogios (que ele é tão alto, e tão bonito, além de educado, e muito inteligente, sim, gosto muito de o ouvir falar, e escreve tão bem). É perfeita a situação para o jornalista, a quem não fica bem elogiar diretamente o entrevistado sem ser por interpostas pessoas – neste caso, as ditas senhoras de meia-idade. Ricardo Araújo Pereira, 39 anos, é tudo isso, e também vencedor do prémio APE pelas crónicas que escreveu na VISÃO (reunidas em livro pela Tinta da China), numa conversa cheia de risos, onde se fala tanto de humoristas como de políticos, ou canalizadores e mineiros. Ah, e de lançadoras do peso da ex-RDA.
VISÃO: Qual a crónica por detrás das crónicas?
RAP: Olhe, não tem mesmo interesse nenhum. Por isso há séries sobre polícias, sobre médicos, mas não sobre gente que escreve coisas. Houve uma sobre os bastidores da televisão, do ponto de vista de um guionista, e foi logo cancelada. Quem quer saber histórias sobre um gajo que escreve? O ato de escrever crónicas não tem mesmo interesse, mas a Ana é que sabe…
Calculo que deva ser desgastante escrever desde 2004 uma crónica semanal para a VISÃO (Boca do Inferno) e mais uma diária para a Rádio Comercial (Mixórdia de Temáticas), durante um ano …
Sim, mas eu não posso dizer isso, porque um mineiro que esteja a ler a revista pensa “desgastante isto, mas o quê? Inventar uma palhaçada por dia?”. Quando digo “eu estou bocadinho cansado”, ocorre-me sempre um mineiro e faço-me um homem…
Provocou um grande desgosto a muita gente quando se acabou a Mixórdia de Temáticas…
Quando o Pedro Ribeiro me fez a proposta, eu disse que não, aliás, sempre que me convidam para fazer um trabalho, o primeiro impulso é recusar. Mas o Pedro resolveu todas as questões e mantive-me na TSF e na Comercial; não há, de facto, muitas pessoas que estejam em duas rádios nacionais ao mesmo tempo. Tinha vontade de saber se era capaz de fazer algo diário, na rádio, sempre diferente, e ao fim de dois meses pensei “isto foi muito giro e consigo…”. Faltavam era dez meses para acabar o contrato. Levantava-me às seis para gravar aquilo… Se me organizasse, eu até conseguia gravar à tarde com calma e passaria na manhã seguinte como se fosse um direto, mas eu andava a sofrer sem ter ideia nenhuma até às onze da noite e depois ocorria-me qualquer coisa que achava que podia ter algum potencial e levantava-me às seis para escrever o texto até às sete e meia… Estava a dar cabo de mim, e nisto ocorre-me o mineiro e penso “não sejas maricas.”
Ultimamente as crónicas da VISÃO andam muito presas à atualidade…
Nem sempre foi assim. Às vezes, eram sobre minudências quotidianas, mas nestes tempos a realidade tem-se imposto com tanta força… É um bocado cansativo, se quer que lhe diga. Há um número limitado de coisas que se pode chamar ao Vítor Gaspar, precisava que arranjassem outro; já estou farto destes, precisava que se renovassem.
Não sente que ser ativista político é quase um dever cívico hoje?
Até pode ser, mas não é ali que eu vou fazê-lo. Muitas vezes sou convidado para sessões sobre sátira política, e quando chego lá apercebo-me que a única pessoa interessada em sátira sou eu, de resto toda a gente está interessada em política. Eu não votei neste governo, não tenho rigorosamente nenhum apreço pelo que eles estão a fazer, mas o meu trabalho é fazer rir as pessoas. E é isso que as pessoas esperam de mim, e bem. Assim como espero que um canalizador ponha os canos a funcionar como deve ser, por muito que ele não concorde com o que o governo está a fazer.
Mas as pessoas exigem mesmo mais de si, como se o Ricardo pudesse funcionar como a oposição…
Não me parece que isso seja legítimo. Estamos em democracia, não votei nestes tipos mas a esmagadora maioria dos meus compatriotas votou. Toda a gente que escreve parte de um ponto de vista. O próprio humor é um ponto de vista sobre as coisas diferente daquele a que estamos habituados, provavelmente até inverso. De facto, os meus textos refletem o meu ponto de vista.
Mas estando nós em período de urgência, digamos assim, não sente o dever de intervenção política, tendo um canal aberto, e sabendo que é tão ouvido e considerado?
O que é curioso é o seguinte, as pessoas que concordam com os meus pontos de vista, dizem isso, excelente, esse canal a que tens acesso deve servir para minar o governo… Uma vez pusemos um outdoor ao lado do dos nazis [que mandava embora os emigrantes, colocado no Marquês de Pombal] e os jornais perguntaram se era ativismo político e nós dissemos “é uma piada”. No dia seguinte, o Público escrevia, “eles dizem que é só uma piada” mas o “só” foram os jornalistas que acrescentaram. Acho rústicas as pessoas que acham que uma piada é “só uma piada”. Acho mais importante fazer rir as pessoas do que derrubar o governo. Não tenho nem a pretensão nem o direito, eu queria que o governo caísse, mas o povo votou, caíram no maior barrete, é certo, mas quem sou eu para vir dizer que essa cerimónia da urna não valeu nada?
Recusaria participar num comício?
Em princípio não. Mas isso é muito diferente do que usar as minhas crónicas para fazer oposição. As crónicas não são um panfleto. O meu trabalho é fazer rir as pessoas e isso para mim é muito importante. É a minha tarefa, considero-a muito nobre. A certa altura diziam-nos [aos Gato Fedorento] “não se metam com os políticos”, como quem diz “não se metam na droga”. O Herman foi censurado, entalado, acabaram-lhe com um programa. Ele foi uma espécie de Martim Moniz dos humoristas. Tenho a certeza de que isso nunca me vai acontecer porque lhe aconteceu a ele. Eu não vivi um minuto sob ditadura, isso nem me ocorre, nem me passa pela cabeça. Não quero acreditar que ainda vivemos nesse país.
Mas concorda que a sua voz consegue chegar até onde outras não chegam….
Não. Estamos em desacordo em quase tudo. O humor não tem poder, ou quase nenhum…
Sempre se disse que o humor é absolutamente temido pelos governantes…
Pois sempre. Mas os governantes tem a sátira em mais alta conta do que ela merece. É possível que os humoristas tenham uma consciência mais aguda da absoluta impotência da sátira política. Há uma história de que eu gosto imenso de um comediante inglês chamado Peter Cook, que estava a conversar com alguém que lhe disse “para mim os humoristas mais interventivos e poderosos da história são os que trabalhavam nos cabarets de Berlim dos anos 30”. E Peter Cook disse, “sim, eles deram cá uma ensinadela ao Hitler, didn’t they?”. E realmente essa frase resume o que é poder da comédia. Isso é um cliché…
Então, e os políticos que se perfilavam para ir ao seu programa? Já quase não interessava quem ganhava os debates entre eles, mas sim quem conseguia passar na prova da entrevista do Ricardo Araújo Pereira, sem fazer uma figura demasiado triste…
Vamos lá ver… Na primeira parte da programa nós dizíamos o que nos apetecia, era sátira política à nossa vontade, podíamos ser malcriados e tudo. Na segunda parte, eles eram meus convidados e eu não faço um convite a uma pessoa para a humilhar nem para a bajular. Eu definiria aquilo como uma espécie de provocação civilizada.
Mas porque o Ricardo é muito bem educado e isso obrigava-os a serem-no também…
Repare, aquilo não eram entrevistas políticas, eu não queria humanizar o político, não ia ali perguntar quantos gatos tinham, ou qual eram os seus hobbies, nem queria saber sobre a vida privada deles nem sobre os netinhos… Concedo que eles saíssem de lá humanizados porque estar a ser provocado e sair de lá com mais agilidade os humanizava – e isto é só uma nota para os nossos leitores que não o saibam: eles já eram seres humanos antes de entrarem no programa. Mas quando eu digo ao Sócrates “a Clara de Sousa estacionou no meu lugar aqui da SIC, importa-se de acabar com o telejornal dela, se faz favor”, isso é evidentemente uma pergunta política, porque fazia referência à intervenção dele no telejornal da Manuela Moura Guedes. Uma vez, uma pessoa fez uma crítica ao programa dizendo “isto não são perguntas, são piadas com ponto de interrogação no fim.” A crítica pretendia ser maldosa e acabou por ser elogiosa, porque era exatamente aquilo que nós pretendíamos. Piadas políticas com ponto de interrogação no fim. Por acaso, não me lembro de ver naquela altura entrevistas politicas em que alguém dissesse ao Sócrates “você acabou com o telejornal da TVI”, era tema tabu…Mas nós fizemo-lo daquela maneira.
Daí o tal poder…
Mas é um poder muito relativo, o Sócrates ganhou
Mas também não se portou mal na sua prova.
Mas ninguém se portou mal. A comédia é muito menos poderosa do que as pessoas acham. Os políticos é que têm essa ideia…
Porque a comédia é subversiva por natureza.
Sim, mas tenho muitas dúvidas sobre a eficácia de um humorista cujo objetivo não seja o meu, que é o de fazer rir, e instrumentalize a sua comédia para obter um fim político. Quando fizemos o sketch do professor Marcelo sobre o aborto, alguns analistas disseram, este sketch foi decisivo para ter ganho o ‘sim’. Mas não concordo nem com as pessoas que concordam com os meus pontos de vista e dizem “usa o teu canal como arma de luta” nem com aquelas que não concordam com os meus pontos de vista e dizem “tu devias fazer pouco também das outras ideias”. Como se um devesse ser um juiz, imparcial…
Os humoristas não estão obrigados à deontologia do contraditório…
De todo. Não tenho de ser imparcial em nada, Acho isso absurdo. Até porque, em última análise, isso significa “faço uma piada sobre o Hitler se a seguir fizer uma sátira bastante azeda sobre os 6 milhões de judeus”. Não faz sentido. A Fox andava muito irritada porque o programa do Jon Stewart tinha uma tendência liberal e quis criar um programa humorístico que transmitisse o ponto de vista conservador, e o programa falhou: não porque os conservadores não tivessem graça, mas porque o objetivo do programa era transmitir o ponto de vista conservador. Uma guionista do Jon Stweart fez um artigo sobre cinco tipos de piadas que nunca entrariam no programa dele: uma delas era “piada que obtém um aplauso antes de uma gargalhada”. Na sátira política é mais fácil obter um aplauso do que uma gargalhada: basta-me subir a um palco e dizer “este político é um bandido!”, e sei que vou receber um aplauso. Obter gargalhadas é mais difícil. Dá muito mais trabalho. Eu tenho demasiado apreço pelo riso para pensar que vou fazer cair o governo com uma crónica. Em França, o Chirac estava em último nas sondagens, e todos os amigos o abandonaram. No Contra-Informação deles, o boneco do Chirac estava cheio de punhais espetados nas costas e ele andava por ali, a queixar-se de uma comichãozinha nas costas. E quando o Chirac ganhou, os analistas disseram que foi a figura patética com que ele foi representado, um desgraçado, traído por todos, que fez com que as pessoas se condoessem. Eu duvido muito que os guionistas daquela série se tenham virado uns para uns outros e tenham dito “sabem como vamos reeleger o Chirac?”.
Mas isso não comprova a enorme influência que o humor pode ter?
Eu não sou ingénuo ao ponto de dizer que não tem efeito nenhum… Mas ninguém poderia prevê-lo.
Quando se fala nestes retrocessos todos, sociais, laborais, constitucionais, educacionais, civilizacionais, acha que o mesmo pode acontecer ao humor? No caso do entretenimento televisivo, pessoas que se divertem ao ver outras pessoas saltar para piscinas… Deve ter sido a primeira vez que um homo sapiens se riu, quando viu outro cair…
Sempre houve coisas reles, as pessoas sempre se divertiram com coisas reles, e coexistiram com outras menos reles. Mas adorava ter estado na reunião onde alguém disse “já sei, vamos atirar celebridades para a água. É isso mesmo, não digas mais, traz as câmaras e uma piscina!”.
Este prémio de escritores para as suas crónicas significa um patamar mais firme do seu lugar na literatura?
Não diria isso, o prémio tem importância relativa, foi o gosto daqueles jurados naquele ano, eu agradeço muito, mas não é garantia seja do que for.
E o facto de estar acompanhado por outros, anteriomente premiados, todos eles com estatuto de escritores?
Os outros premiados não têm culpa nenhuma, não merecem esta vergonha. Não vejo que o prémio seja uma carta de condução que me habilita ao estatuto de escritor. Esse estatuto não desejo nem procuro. A minha profissão é ser humorista.
Mas porque não? Há escritores humoristas…
Sim, claro. Mas não é o meu caso. Eu não sou um escritor. Nos EUA eles não têm o mesmo respeito que nós pela palavra escritor: alguém que escreva qualquer coisa é writer. O Philip Roth e o autor da comédia mais reles são ambos designados por escritores. Para nós, a palavra tem outras conotações.
O Manuel António Pina definia crónica como jornalismo com saudades da literatura e literatura com remorsos de ser jornalismo…
As dele eram claramente isso. As minhas crónicas são humorísticas, são diferentes. Um texto de um escritor tem objetivos estéticos, e eu, em primeiro lugar, tenho uma preocupação de eficácia. Isso é uma coisa curiosa da comédia que nenhum outro género tem. A possibilidade tangível, de eficácia prática. É possível medir o sucesso de uma piada, por exemplo.
Na crónica também há timings como na comédia, tem de começar a ter graça à sétima linha por exemplo?
Aquilo só resulta se provocar o riso, e é o meio em que estou mais despojado de instrumentos. Na rádio, e na televisão tenho som, imagem, e texto. Na crónica tenho palavras seguidas num papel. Fazer rir pessoas através de signos distendidos numa folha é mais difícil do que se eu puder fazer uma careta ou colocar um bigode.
Mas para si deve ser tão intuitivo que já nem reflete na forma mais eficaz de compor a crónica…
Tenho uma aversão enorme àquela perspetiva de talentos inatos. Sinceramente não acredito que ninguém nasça ‘com isto do humor’. Custa-me acreditar que um animal nasça com um talento inato para praticar um desporto que foi inventado no século XIX… Acho difícil que a natureza esteja atenta ao ténis e produza um bicho que tenha um talento inato para jogar aquilo. Embirro imenso com isso do talento. Não conheço nenhum estudo sério sobre talento, mas sobre criatividade sim, e sérios, mas nenhum diz que ela é inata. Eu fui aprendendo desde pequeno, porque me interesso pelo riso. Interesso-me imenso por fazer rir pessoas e gosto daquilo que acontece quando elas se estão a rir. Desde pequeno que me fascina e sempre tentei perceber quais os mecanismos que fazem funcionar o riso. Isso tem algumas “regras”, o que é prosaico, algumas convém conhecê-las para as transgredir, e usar de outra maneira, para as corromper, mas acho que é fundamental conhecê-las. Essas regras já estão interiorizadas por mim, assim como o carpinteiro não pensa “isto agora requer uma plaina”, ele já lança a mão à caixa de ferramentas naturalmente.
Como lida com as abordagens da rua, como a que aconteceu agora mesmo?
Não gosto de fazer a rábula da vedeta oprimida pela fama. Porque me lembro dos mineiros da fama. Uma vez escrevi uma crónica sobre jornalistas e recebi um SMS a dizer “como eu te compreendo…”, e era Mourinho. José Mourinho é uma estrela planetária, ele não pode pôr o nariz fora de casa. É a mesma coisa que um mineiro me vir dizer “estás cansado? Como eu te compreendo…”. Não lhe vou mentir, seria mais simpático estar a jantar num sítio qualquer e não ser abordado, e até estar a coçar-me em sítios esquisitos e não ter a preocupação do “se calhar estão a ver-me…”. É claro que há uma parte chata, mas saio pouco de casa, sou bicho do mato, sempre fui… Não me posso queixar muito, porque me agradecem, e isso até é comovente, as pessoas são simpáticas Eu abordei algumas pessoas na minha vida e sei o que se sente quando se vai abordar alguém de que se gosta. Uma vez na rua encontrei o Eusébio. Foi um momento marcante na minha vida e absolutamente definidor. Tinha 18 anos, ia com os meus pais, de carro, na estrada de Benfica, e o Eusébio estava a tentar apanhar um táxi, e os taxistas em vez de fazerem o seu dever, que era parar, pôr na rua os clientes que tinham lá dentro e fazerem entrar o Eusébio, porque acho que essa é a ética que o taxista devia impor, não… continuavam a passar, enquanto Deus estava na rua. E eu estive meia hora a tentar convencer o meu pai a parar e depois mais meia hora a tentar convencer o Eusébio de que não era um maluco e ele lá entrou no carro. Os meus pais a falarem com ele, porque eles não acreditam na divindade do Eusébio, e eu a olhar para ele, embasbacado, sem articular palavra.
E quando lhe vêm contar anedotas?
Hummm… Pois, há destinos piores…
O problema com os paparazzi está ultrapassado?
Sim, à conta de processos judiciais, eles foram perdendo o vigor… Ainda por cima nesta fase em que as revistas não tem tanto dinheiro para gastar…
Não presta atenção às redes sociais, mas concorda que aquilo que a ficção científica nos prometia, afinal, não são naves espaciais mas a revolução nas comunicações?
Pois, estou muito magoado. Já andava desconfiado por causa do Matrix. Afinal os heróis do futuro são os informáticos. A minha ideia dos informáticos sempre foi a dos tipos com o colarinho apertado até acima, borbulhas, e o tom de pele esverdeado. Os milionários são informáticos, fazem-se filmes sobre eles… Até os piratas, esses grandes transgressores, são informáticos.
A falta de sentido da ironia e o literalismo incomodam-no?
O que se há de fazer? Às vezes perguntam-me “tu nunca falas a sério?”, mas eu estou sempre a falar a sério. Se eu disser “Portugal está um país fantástico, os idosos estão descansados e os jovens cheios de perspetivas”, estou a falar a sério, ironicamente. Ser irónico é falar a sério.
Sofre do síndrome do Hitchocock, que dizia que se filmasse a Cinderela toda a gente ia procurar o corpo na carruagem? Também estão sempre à espera que diga uma piada, sente esse peso?
Eu não diria sofrimento ou peso… São palavras demasiado duras.
São para mineiros?
Sim, eu sou tão dado a aborrecimentos como outra pessoa qualquer, mas não me oprime que as pessoas esperem que eu a faça rir porque essa é a minha profissão. É como o canalizador…
Mas nem o canalizador está sempre a trabalhar…
É possível que ele fique um bocado desagradado quando está a jantar e lhe vão pedir para arranjar uma torneira…. Mas quando me abordam na rua não sinto que esperem que eu tenha ali um sketch pronto para debitar.
Há aquela famosa frase do Eco que diz que o texto é uma máquina complicada que exige esforço do leitor para a fazer funcionar. Tem isto em conta quando escreve as crónicas?
Acho má ideia acharmos que o leitor sabe menos do que nós. Nunca suponho nada sobre os conhecimentos e a capacidade intelectual do leitor. Para mim nunca é uma preocupação. E acho justo não ter esse prurido “ah estou a ser tão complexo, meu Deus…”. Mesmo nos Gato Fedorento, a nossa filosofia sempre foi fazer coisas às quais nós achamos graça. Fazemos aquilo que nos interessa e depois temos a sorte, ou o azar, do público gostar ou não. Uma das razões que me levam a supor de que o público, coitadinho, não precisa que lhe mastiguem a comida foi quando em 2009, chegámos à SIC e dissemos que gostávamos de títulos de programa que soassem o mais absurdo possível quando fossem anunciados pela voz da grelha de programação: “a seguir ao telejornal Gato Fedorento Esmiúça o Sufrágios.” O diretor, que era o Nuno Santos, riu-se, mas houve gelo noutros sectores da sala. E as pessoas do marketing disseram “mas ninguém sabe o que quer dizer esmiúça”. Fizemos finca-pé. Há um dicionário on line, que retribui o significado, e informa de quantas vezes a palavra foi pesquisada. O verbo esmiuçar não tinha sido pesquisado uma única vez em 24 meses. Mas na semana em que o programa foi para o ar tinha sido pesquisado quatro mil vezes. Quem não sabe, vai ver. Esmiuçar foi considerada a palavra do ano, e passou a aparecer nos títulos dos jornais.
Consegue comunicar com pessoas que não têm o sentido de ironia?
Se as pessoas não se riem, a culpa é minha. Noutro dia convidaram-me da faculdade de medicina de Lisboa e eu disse-lhes umas coisas sobre a amoxicilina que eles acharam engraçadas. Mas se disser uma piada de antibióticos num congresso de contabilistas, eu sei que não vai funcionar.
Porque é que há pessoas que não acham graça a nada? O que falha ali?
Sarte diz que uma pessoa é mais livre se conseguir incorporar a dimensão de jogo no seu discurso. Uma pessoa que é literal define primeiro o mundo e só depois, a si própria. Uma pessoa que joga com os sentidos e significados torna-se mais livre, como uma criança que diz “eu agora sou um morcego”, está a ser mais livre porque está a redefinir o mundo. É ela que manda no mundo e não o mundo que manda nela. Uma pessoa séria, diz o Sartre, é aquela para quem o mundo é o que é. O humorista olha para o mundo, sabe o que ele é, mas pensa “e se ele fosse ao contrário, e se eu o olhasse de outra maneira?”. Uma pessoa séria não faz isso, respeita os limites que o mundo lhe apresenta. Tem uma vontade de ser séria.
Mas acha que é uma vontade ou uma incapacidade?
Às vezes é uma vontade. Por exemplo há poucas humoristas mulheres – por vontade e não por incapacidade. Socialmente não há ainda abertura para isso. Mesmo nos EUA, há poucas, é uma espécie de conformação àquilo que o mundo é. Por exemplo, na escola, há um miúdo que se põe em cuecas para fazer rir os outros. Nunca é uma menina, porque tem de se dar ao respeito… Tirando as diferenças anatómicas, que eu aprecio imenso, acho que somos iguaizinhos.
Também não muitas há mineiras nem canalizadoras…
Pois, embora o meu modelo masculino sempre tenha sido as lançadoras do peso da ex-RDA.
Mas integrariam bem uma mulher humorista nos Gato Fedorento ou seria considerada uma intrusa?
A questão do sexo não seria um problema. As únicas pessoas que fomos convidando para os sketches eram mulheres. Agora pode é contrapor que eram apenas para os papéis de mãe ou pega ou galdéria…