Boa tarde a todos. Em nome da LeYa e da Teorema, gostaria de agradecer a vossa presença aqui no dia em que fazemos o lançamento público do romance QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR, de Ana Margarida de Carvalho. Queria também agradecer à Livraria Buchholz, que é hoje a nossa anfitriã, e muito especialmente ao escritor, ilustrador, músico, realizador, fazedor de cerveja e muitas outras coisas, Afonso Cruz, que, no meio dos seus múltiplos afazeres, arranjou tempo para aqui vir apresentar a obra. Antes de lhe passar a palavra, pedia apenas uns minutos da vossa atenção para umas breves considerações.
Quando eu tinha aí uns oito anos, todas as quintas-feiras ao fim da tarde me sentava perfiladamente com o meu irmão mais novo à mesa da sala de jantar para ouvirmos o meu pai ler-nos de um jornal – no caso, o Diário de Lisboa – umas crónicas que se chamavam “As Redacções da Guidinha” e eram assinadas por Luís de Sttau Monteiro. Embora fôssemos demasiado novos e demasiado ignorantes para podermos compreender tudo o que se escrevia naquelas entrelinhas (eu sobretudo, já que o meu irmão estudava bastante mais), a verdade é que, em pouco tempo, começámos a suspirar por esse momento de leitura semanal, uma vez que a matéria de que se faziam esses textos, mesmo que sob a forma de redacções de uma menina, nada tinha que ver com o que líamos na escola ou com as histórias já muito coçadas dos livros infantis que havia lá em casa. Tenho, pois, a convicção de que a Guidinha foi, para mim, uma espécie de aproximação à literatura e ao prazer de ler e que essa experiência familiar me terá, naturalmente, conduzido também à leitura de jornais, actividade que pratico diariamente há muitos anos, espreitando sempre o talento por detrás das notícias, das reportagens, das crónicas e dos artigos de opinião e tendo descoberto, ao longo da vida, muitos jornalistas que eram verdadeiros escritores; e, se nem todos chegaram a publicar obra literária, quanto a outros – como Baptista Bastos ou Assis Pacheco (para citar apenas dois exemplos entre os muitíssimos que há) – até me convenci de que foi o gosto pela escrita que os levou ao jornalismo, e não o jornalismo que os levou à literatura.
Embora, como quase tudo (e digo já que a edição também não foge à regra), os jornais se tenham transformado hoje numa coisa completamente diferente – na qual a urgência de ser o primeiro a dar a notícia ou o número standard de caracteres imperam tantas vezes sobre o rigor da informação e o cuidado com a língua (falo da portuguesa, naturalmente); embora a velocidade destes nossos tempos quase nunca permita a quem escreve em jornais mimar as palavras e fazer bem feito e bonito (e neste bonito pode caber muita coisa crua, violenta e horrivelmente bela) – a verdade é que, aqui e ali, ainda conseguimos encontrar um jornalista que nos encanta com a sua prosa e no qual vemos um potencial escritor.
Ora, sempre achei (e não sou a única) que Ana Margarida de Carvalho cabia nessa categoria; mas, por outro lado, sempre entendi o seu silêncio literário pelo peso que sobre ela deveria exercer a concorrência, no seu caso, absurdamente próxima e, passe a expressão, absurdamente respeitável e respeitada. E, tendo admirado a sua timidez, o recato, o temor, a modéstia (enfim, o que fosse) ao longo de tantos anos, não posso igualmente negar que vejo agora na publicação de QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR um acto de coragem, a assunção de um risco que é nela mais elevado do que num escritor com outra ascendência e outra profissão; fiquei, pois, francamente feliz que se tenha atrevido à literatura e que tenha podido eu servir-lhe de intermediária, porquanto poucas vezes um romance de estreia tem a maturidade e a inteligência que encontrei em QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR, no qual gostaria de destacar uma escrita, por assim dizer, de largo espectro – que vai do lírico ao despojado para produzir o efeito desejado a cada passo – e, ao mesmo tempo, a revelação de um vasto conhecimento da literatura alheia, que a autora homenageia de forma original, sem alardes desnecessários nem qualquer espécie de epigonismo, afirmando desde logo uma personalidade literária que importa acompanhar.
Mais feliz ainda fiquei por saber que este romance, sobretudo tratando-se de uma primeira experiência na ficção, foi finalista da última edição do Prémio LeYa, cujo júri é, como todos sabem, composto por reputados académicos e escritores lusófonos. Não que eu precisasse do resguardo dos mestres no caso específico deste livro para saber que estava perante um grande romance; mas, como Ana Margarida de Carvalho persistia nas suas dúvidas quanto ao genuíno interesse do que escreveu (o que, diga-se de passagem, só abona a seu favor, pois de gente que nunca tem dúvidas e raramente se engana, mesmo que com uma mãozinha da senhora de Fátima, andamos todos fartos), sossegou-me saber que não estava sozinha no meu julgamento e conforta-me agora partir para um mercado bastante autofágico como é o dos livros com a vantagem deste ámen intelectual.
Além da qualidade do livro, há ainda uma razão algo egoísta para me sentir satisfeita. Perguntam-me muitas vezes porque, dedicando-me há tantos anos à edição de novos autores, são tão raros os livros literários de mulheres que publiquei. Nunca soube responder com segurança a esta questão, embora tenha já avançado duas explicações plausíveis: a primeira é de que, por serem as mulheres estatisticamente quem hoje lê mais, talvez o seu grau de exigência seja também maior e as impeça de publicarem um texto com o qual não estejam inteiramente satisfeitas; a segunda é de que a educação dos filhos, bem como grande parte das tarefas ditas domésticas, eram, até não há muito tempo, ocupação quase exclusiva das mulheres, independentemente de estas trabalharem também fora de casa, roubando-lhes um tempo que poderiam dedicar à criação. Este ano publiquei dois excelentes romances de estreia de mulheres, nenhuma das quais saída exactamente da adolescência. Mas, se por acaso foi alguma das razões que invoquei o que levou Ana Margarida de Carvalho a começar mais tarde do que a maioria dos autores-homens que publico, estou também certa de que a espera só a beneficiou e nos beneficiou, porque QUE IMPORTA A FÚRIA DO MAR é uma estreia muito segura. E muito obrigada, Ana Margarida, por – cedo ou tarde – ajudar a compor o meu rol de autores e a livrar-me da sempre incómoda reputação de editora machista.
O romance que hoje lançamos cativa-nos também pela sua história – a de Joaquim e Eugénia, diferentes em quase tudo, afins em tanta coisa. Essa parte, porém, deixarei para o Afonso Cruz, até porque não pretendo atropelar-lhe mais o discurso. Resta-me, assim, agradecer ao meu colega Rui Breda o mediador cúmplice e fantástico que foi na história da publicação deste livro (pois eu não conhecia pessoalmente a autora) e a forma empenhada como tem andado com este romance ao colo; dirigir também uma palavra de gratidão ao actor e encenador Miguel Seabra, que lerá excertos do romance, e a Ana Maria Pinto, que cantará Maio, Maduro Maio, de Zeca Afonso (a canção de onde foi retirado o verso que dá título ao romance); e, para terminar, felicitar Ana Margarida de Carvalho pela sua coragem e pelo seu talento e dizer-lhe que, enquanto editora, mas mais ainda enquanto leitora, desejo sinceramente que não fique por aqui.
Passo então a palavra ao Afonso Cruz. Obrigada a todos pela vossa paciência.