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Parece muito mas foi há tão pouco. Ainda ontem. Quase. Quem diria… A Ana, licenciada em Letras, a arquivar impostos extintos no Ministério das Finanças (precária, claro). O Zé Pedro a acumular os projetos de engenharia civil, no Técnico, com as aulas de contrabaixo no Conservatório e no Hot Club. O Luís a dar aulas de música. E o Pedro, guionista de televisão, a desejar ser enfermeiro. Em 2008, sai o primeiro disco, Canção ao Lado. A história de uma banda em pista de aceleração. Ganha altitude. E voa. Primeiro voo interno, muitos concertos, ainda pouco repertório: “A Ana tinha de falar imenso e nos encores rrepetíamos as músicas…”. Dois anos depois… Dois Selos e um Carimbo. Multiplatinas, mais e mais concertos, uma legião de fãs, canções entoadas de cor por multidões inflamadas, quatro coliseus cheios. O voo já é transatlântico. Fazem digressões por todos os continentes (falta-lhes a Oceânia, e o Brasil está-lhes “atravessado”), o reconhecimento da crítica e do público é consensual; uma canção inédita, Parva Que Sou, apresentada nos coliseus em janeiro de 2011, hino involuntário da geração precária, torna-se assunto nacional, discutido em blogues e em colunas de jornal, chega até à Assembleia da República. No próximo dia 18, lançam o terceiro álbum de inéditos, Mundo Pequenino, produzido pelo lendário Jerry Boys – que trabalhou, como produtor, com os Beatles, os Stones, os REM, e que, ultimamente, se virou para a world music e trabalhou com Ry Cooder em Buena Vista Social Club. Deolinda, a rapariga solteira e espigadota, que não deixa os quatro músicos a falarem de si mesmos na terceira pessoa, como se fossem jogadores de futebol, já não espreita o mundo das janelas rendadas do bairro. Agora ela é faroleira a observar o mundo. Pequenino, vá. A VISÃO falou com os Deolinda, acabados de regressar de Itália e da Eslovénia. E até aí ouviram, entre a multidão, um voz estrangeira que apelava a um encore: Qui parva qui sou!!! A célebre canção que eles fizeram questão de não gravar neste novo disco. Ficou no duplo ao vivo. Para não traírem a magia do momento, a vibração de um público que a ouviu pela primeira vez e aderiu num entusiasmo único (“aquela reação emotiva do público também faz parte da canção”) e tão genuíno que eles acreditam que talvez nunca se volte a repetir, nas suas carreiras.
VISÃO: A Deolinda já tem tanta estrada que, daqui a pouco, parece uma canção dos Da Vinci…
LUÍS JOSÉ MARTINS (guitarras): Pois, quando der para cantar a música dos Da Vinci [Conquistador] a banda acaba. Está cumprido o nosso sonho de criança (risos).
Como foi possível a Deolinda crescer tanto, sem envelhecer nada, neste novo disco?
ANA BACALHAU (vocalista): Ela cresceu para fora do seu bairro, pôs o pé no mundo e trouxe novas ideias, novas sonoridades na bagagem. Há muitos pormenores no novo disco em que se nota a influência da estrada. Enquanto músicos, aprendemos imenso. Sentimo-nos à vontade no estúdio, foi muito bonito estar com Jerry Boys e juntar, pela primeira vez, o piano e os metais.
ZÉ PEDRO LEITÃO (contrabaixo): A Deolinda alargou a janela. É uma Deolinda mais viajada, uma Deolinda de estrada.
Pode-se dizer que este é um disco mais cosmopolita?
PEDRO DA SILVA MARTINS (compositor das letras e músicas, guitarras): Tudo mudou, as nossas vidas mudaram, essas viagens, tantos concertos, as novas experiências, os contactos com novos músicos… De certeza que o disco seria diferente depois disso. Introduzimos mais instrumentos, o próprio Jerry Boys insistiu para que nós participássemos mais nos coros. Ele disse: ‘mas se vocês até sabem cantar…’.
LJM: Comprei instrumentos de cordas na Índia, cheguei a pensar usá-los no disco, mas tocava-os tão miseravelmente (risos) que acabei por desistir. Mas influenciaram-me seguramente, nos arranjos…
É esse o grande desafio de um terceiro disco de inéditos: ser diferente sem perder a identidade?
LJM: Nos primeiros discos, fechámos as músicas aos quatro (guitarras, contrabaixo e voz) por opção artística. Aqui, abrimo-las a novos instrumentos também por opção artística: quando achávamos que as canções estavam a pedir, adicionávamos um piano, ou sopros ou percussão…
E até têm, finalmente, uma tuba…
ZPL: Pois (risos). Antes, era eu que a simulava e marcava também a percussão, e eles nas guitarras também compensavam a sua ausência.
LJM: Não te podes queixar, todos os três discos abrem com o contrabaixo…
… que costuma ser um instrumento mais de background.
ZPL: sim, e nós demos-lhe mais protagonismo….
Mas há uma coisa a que nunca resistem, que é a provocação aos estereótipos do fado. Neste disco, conseguem misturar num refrão “A casa da Mariquinhas, tem um lagarto pintado, ó-i-óai, foi lá que a Severa se finou. Foi um toiro que a matou, deu um coice no telhado lai lai lai…” e a “moda das tranças pretas”, a “razão de ser doutor e ser fadista”, “deu-me esta voz a mim” e “nunca, nunca mais!”…
PSM: (risos) É uma paródia como outra qualquer, brinca-se com os clichés e não mais do que isso… Mas há os fundamentalistas do fado, sim, e isto é uma desconstrução
LJM : Pois, isso tem piada, porque há esse lado muito certinho e essa postura muito fundamentalista.
PSM: Se não existisse deixava de ter piada… (risos). Foi quase fazer uma manta de retalhos, deu-me imenso gozo compor esta música [Fiscal do Fado]. Desatávamo-nos a rir quando a estávamos a ensaiar. Porque é isso, uma paródia à instituição…
A ironia é uma marca vossa. Estranharam as reações violentas ao Parva Que Sou?
AB: Claro. Ficámos irritados e magoados. Com as deturpações e as instrumentalizações que fizeram da música por todos os lados. Optámos por criar uma carapaça e não falar. Não nos quisemos colocar à frente da canção. O nosso silêncio e a própria música foram bem mais eloquentes.
ZPL: Foi impressionante. Sentimos uma máquina a caminhar sobre a canção… E líamos coisas do género ‘os Deolinda recomendam que se deixe de estudar, dizem que o estudo não serve para nada, são alienados, é uma canção que não aponta soluções para o problema…’. OK, está bem…
LJM: Para a próxima, escrevemos uma música assim: ‘alínea a)…’.
PSM: Sentíamos que se nos atravessássemos à frente da canção, naquela altura, iríamos ser completamente trucidados…
LJM: Até porque explicar artisticamente uma canção não é muito digno…
Como explicar uma anedota?
L JM: Sim, a canção fala por si. O que é assustador é não se perceber a ironia.
ZPL: Mas eu acho que não foi só estupidez. Acho que houve uma vontade de, mesmo percebendo-se, distorcer… Há uma máquina que funciona assim. Tenho ideia de que a maior parte eram pessoas perfeitamente esclarecidas.
LJM: A canção dá espaço, tem muitos silêncios que são de reflexão e que vão preparando um refrão muito forte e as pessoas vão embarcando nesse crescendo, estão cada vez mais dentro até àquele grito, “parva eu não sou” que desconstrói tudo.
PSM: A primeira vez que sentimos aquilo foi impressionante, foi um momento único e logo no primeiro refrão sentimos o nervoso da sala, era uma coisa tão fascinante, tão inacreditável, quase impossível… Estávamos a tocá-la pela primeira vez e as pessoas levantavam-se na sala… Por isso regravá-la e colocá-la neste disco era como que uma traição àquele momento, nem nos passou pela cabeça. Aliás, nem foi discutida essa possibilidade.
ZPL: Ficámos de tal maneira emocionados com a reação das pessoas que nem conseguíamos tocar bem a canção, olhávamos uns para os outros, atrapalhávamo-nos nas notas… Só à quarta vez é que saiu bem, tivemos de nos concentrar para gravar o CD ao vivo…
PSM: E na Galiza, começaram a atirar cravos para o palco, foi tão forte… Aliás, já há versões em catalão. A precarização é uma situação que afeta toda a Europa do Sul…
LJM: Estou convencido de que esta é a única das nossas canções que tem data.
Porquê? Porque agora as coisas se agravaram de tal modo e já não se falaria em precarização mas mesmo em miséria?
LJM: Sim, também. Aquela era uma canção daquele momento.
E este novo CD é um disco destes tempos?
LJM: Eu encontro-me nas canções.
PSM: Ao contrário do primeiro disco em que tínhamos uma música de evocação dos tempos da clandestinidade, neste as músicas são todas destes tempos. Por exemplo, passámos a sentir a necessidade de percussão, precisamos de batimento, qualquer coisa que empolgue, porque as pessoas estão de cabeça baixa. Dar um ânimo, e sentir o ânimo empolgar isto nem que seja a abanar a anca, na Musiquinha…
A sensação que atravessa todo o disco é a de mudança…
PSM: Sim, há essa urgência, uma ideia de anticonformismo, de mudar, mas que seja com vontade.
Mas nunca explícita…
PSM: Não é um disco panfleto.
Neste momento, qual é o vosso grau de indignação?
AB: É altíssimo. Vivemos num tempo em que nos está a ser apresentada uma solução “que não me parece ser a melhor nem a única. Revolta-me que nos esteja a ser vendida uma receita, sabendo nós que existem outras, como acontece na Islândia ou na Irlanda. Devíamos pensar um bocadinho nisso, sem sangrar o País que é o que está a acontecer. O grau de indignação é tal que, nas ruas, já nem há raiva, mas tristeza. Se eu fosse política, tinha medo de uma manifestação de tristeza. Porque as pessoas já não têm nada a perder e isso preocupa-me.
Pela primeira vez têm uma canção de embalar, Balanço…
LJM: Sim, mas é uma canção de embalar um bocado macabra.
PSM: Tem a ver com o balanço da criança e das contas da vida e da crise. Imagina-se uma mãe com a criança ao colo e com as contas em cima da mesa, uma imagem não muito romântica, mas forte e verdadeira.
Já provaram que seria muito fácil para vocês mobilizarem massas com uma canção vossa…
ZPL: Se conseguirmos pôr as pessoas a pensar e a questionar já é uma bela mobilização.
LJM: A indignação está sempre presente. Se fosse explícita não nos representava tão bem, eu gosto que a arte não se justifique. Cabe às pessoas procurar e não encontrar justificações. O mundo do Zeca Afonso e do José Mário Branco é muito diferente do nosso. Fazer isso seria até de uma certa soberba moral da nossa parte, porque isto só muda se houver vontade.
Não se querem comprometer excessivamente?
PSM: O nosso compromisso é, em primeiro lugar, com a música. E é isso que nos leva. Não queremos transformar um disco num serviço programático ou numa bandeira. Talvez alguma coisa nos leve a posições mais marcadas…
Fariam uma versão do Grândola?
PSM: A Grândola é uma canção gigante e é tudo menos um slogan. É uma mensagem poética incrível. Aquela gravação na gravilha foi um momento único, das coisas mais bonitas que se fez, por isso é tão icónica. Tem uma força tão grande, que bastam três ou quatro vozes para ela ganhar uma tal grandeza… Por isso, não estou a ver que o façamos algum dia, há músicas que já vêm na sua versão definitiva.
A Ana diz que o Pedro escreve muito bem, numa perspetiva feminina [a da Deolinda], porque percebe muito bem as mulheres…
PSM:(risos) Não sei se percebo… Percebo? (risos) Fui apurando, fui ouvindo muitas canções feitas por mulheres.
Não há assim tantas mulheres compositoras…
PSM: Ouvi muito Maria Rita, Amélia Muge, o próprio Chico, o Caetano que sempre escreveram tão bem para mulheres. Isso foi um desafio para mim. Quando o Zambujo me pediu uma canção para ele, eu andei ali a patinar uma data de tempo.
AB: O Pedro tem um olhar observador sobre o ser humano. O Pois Foi demonstra um conhecimento da psique feminina incrível – a sensação de estar a falar para homens que não nos estão a ouvir. É fantástico que ele tenha apreendido essa situação. Ele nunca poderia ser o homem do Pois Foi.
É uma boa sensação a de estar na pele de uma mulher?
PSM: É, é giro. Sobretudo ver que as mulheres se identificam…
LJM: Então não é uma sensação assustadora?
PSM: Não, não é assustadora. Não digo que sei tudo sobre mulheres (risos). Só sei que há coisas que resultam e que há letras que são femininas e outras masculinas e eu agora não sei dizer bem o que as distingue, apenas sinto isso. A letra da canção Não Ouviste Nada é muito subtil: ela fala de uma fofoca mas em que a própria está envolvida, é uma forma de dizer sem dizer…
Isso é feminino?
PSM: Eu acho que sim, há uma subtileza de que nós não somos capazes.
O que também há de bom nas suas letras é que elas, as mulheres, saem sempre por cima…
PSM: São mulheres fortes, que sabem dar um murro na mesa e fazem mudar as coisas.
Imaginam-se assim juntos durante 30 anos como os Xutos & Pontapés?
PSM: Acho que sim. Este é um coletivo criativo que ainda tem muito para dar.
LJM: Se, por um lado, há esse olhar feminino, por outro, quem manda nisto somos nós os quatro e damo-nos bem.
Também por razões familiares [são irmãos, primos, casados…]?
AB: O facto de nos querermos bem ajuda, claro.
Nunca se zangam?
LJM: Discordamos
Mas como é a vossa democracia interna, alguém tem voto de desempate?
ZPL: Basta um de nós torcer o nariz a algo, para nos pormos logo a pensar numa solução alternativa. Este é um trabalho de uma banda, fruto de quatro personalidades musicais.
Embora, às vezes, as músicas tenham um lado de canções de autor…
ZPL: O Pedro apresenta-nos as canções que constrói e nós, nos arranjos, e a Ana, na interpretação, procuramos ser o mais respeitadores da letra. Aliás, a hierarquia é sempre a mesma: primeiro a letra, depois a melodia e a seguir os arranjos.