“Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro”, suplicou o escritor francês Apollinaire. António Lobo Antunes cita-o, como já antes o houvera feito numa das suas crónicas, também em tom de súplica. “Escrever mete tanto medo”. E isto foi num fim de noite, no Museu Municipal de Penafiel, depois do lançamento do seu 24º romance Não é Meia Noite Quem Quer, depois de ter escutado a extraordinária análise académica da professora Ana Paula Arnaut (“perdeu tanto tempo comigo… ela está em vantagem: leu o livro; eu só o escrevi”); depois de ter recebido as tantas homenagens orais e gráficas das Escritarias (evento organizado em parceria pelo Município e pela Edições Cão Menor) que espalharam as suas vozes pela cidade, no passado fim de semana, (e atenção que são vozes como as não-personagens dos romances, apenas vozes, todas elas a sua); depois de ter descerrado uma frase inscrita num muro “Escrever é um trabalho que se faz por paixão, com muito sacrifício, com muitas olheiras” (“sei lá, não me interessa, são os disparates que digo, o que é que quer? Uma pessoa numa entrevista só mente, responde não importa o quê, só quer que aquilo acabe”); depois de ter sido abordado por transeuntes que pedem autógrafos nas “caixas literárias” de cartão (que dizem “este pedaço de literatura é para si, leve-o”) espalhadas pela cidade e lhe devolvem as suas lástimas, (“fartei-me de beijar velhotas, cinco tromboses por cada duas, mas as pessoas daqui até beijar bem sabem”); depois de se ter comovido com o rapaz de 18 anos (João Teixeira), da companhia de teatro de rua Andaime, que lhe declama a sua famosa crónica Juro que Não Vou Esquecer, como se fosse um poema ( e não é?): “isto que escrevo sai de mim como um vómito, tão depressa que a esferográfica não acompanha, perco imensas palavras, frases inteiras, emoções que me fogem, isto que escrevo não chega aos calcanhares do senhor idoso de fato completo (…)chamo-me António, não tem importância nenhuma mas chamo-me António e não posso fazer nada por si, não posso fazer nada por ninguém, chamo-me António e não lhe chego aos calcanhares, sou mais pobre que você, falta-me a sua força e coragem, pegue-me antes você ao colo e garanta-me que não morre, não pode morrer, no caso de você morrer eu
No caso de você e da rapariga da almofada morrerem vou ter vergonha de estar vivo”.
E António Lobo Antunes, não na sala de espera da radioterapia, mas no largo do chafariz da cidade, encantado com o talento do rapaz, “é excecional, tem de se fazer alguma coisa por ele, falar com o Luís Miguel Cintra… O miúdo consegue o controle das contenções, ele altera-nos a temperatura do corpo”.
“Se não escrevo, é como se me
vestisse sem tomar banho”.
E, na verdade, o escritor nem queria vir às Escritarias, está cada vez mais bicho do mato, confessa, recusa prémios, aborrecem-no as entrevistas, “tinha medo que Penafiel fosse uma espécie de subúrbio, como a Amadora ou certas partes de Gaia”… “Como é possível sonhar entre viadutos e fábricas, sem pinheiros e caminhos escuros?”, comenta no meio da rua. Veio hesitante, a contra-gosto, mas “afinal esta cidade é tão bonita ,comoveram-me as pessoas, cada vez gosto mais de portugueses.”. Tem um feitio difícil, admite, “mas sou tão fácil de levar”. O bom de se fazer livros, diz “são os amigos desconhecidos”. Uma vez, na altura do cancro recebeu uma carta, no Hospital de Santa Maria, de um leitor de 18 anos que dizia: “Não admito que o meu ídolo se vá abaixo das canetas” – “Isso deu-me uma força que nem se pode imaginar”. Tem vergonha de viver num país em que senhoras idosas bem postas e penteadas passam por ele e segredam baixinho “tenho fome”.
Lobo Antunes é um escritor dos pormenores, dos bibelots, da pequena burguesia (odeia a expressão), mas recebe-lhe os desgostos. Evoca Agostinho da Silva: “A maior parte das pessoas cultas que conheço são analfabetas”. Lembra-se de uma senhora, com uma doença degenerativa grave e o pai médico a perguntar-lhe “como é que aguenta?”. E ela respondeu: “Olhe, é tudo a poder de lágrimas e ais”. “Foi a melhor frase do sofrimento que eu ouvi”.
Porque falar dos seus livros é algo que o desagrada profundamente, “é impossível explicar um livro, nem defendê-lo, muito menos promove-lo. Só tenho mesmo que escrevê-lo”. As entrevistas são “desconfortáveis, um incómodo”: “Tenho medo das entrevistas, são um exercício de vaidade, um pousar de perfil para a posteridade. Ainda por cima, é desigual, porque o outro é que faz as perguntas”. Com o Não é Meia Noite Quem Quer aconteceu-lhe uma circunstância rara, um milagre. Para já, o título não lhe surgiu quase perto do fim, como acontece com anteriores: há que tempos que andava com o verso de René Char na cabeça. Em 1980 fez uma viagem de Aveiro para Lisboa, quando chegou tinha o livro Explicação dos Pássaros feito. Estava dentro de si, enchia-o todo, no seu sangue nas suas veias. Bastava vertê-lo para o papel. “Pensei que esse milagre não se iria repetir mais na minha vida, mas repetiu-se com este livro, a mesma sensação de que o livro me estava a ser ditado e que a mão e a esferográfica não conseguia a mesma velocidade do que a voz que o dizia”: “Parecia água a correr”. Porque o seguinte Caminho como uma Casa em Chamas (já pronto a sair em 2014) já foi o tormento do costume, as falsas partidas, as emendas, os recuos, as hesitações… Como dizia Cardoso Pires, ocorre-lhe,: “É preciso que a gente sofra para que o leitor tenha prazer”. Por isso, acrescenta, “estou grato ao livro por se ter escrito sozinho dentro de mim”.
Chorava, enquanto o escrevia, não porque se comovesse, mas porque aquelas eram as frases exactas. E o lirismo que o romance contém vem, por vezes, mais da cadência e da atmosfera do que das palavras.
Lobo Antunes diz que “os livros maus falam, os bons ouvem”. Obras que têm insónias, que estão sempre a vigiar-nos, a olhar para nós… E que “o livro é o silêncio que fica depois de se ler”. Há livros a quem nós nos prendemos, livros que nos prendem a nós. Não é Meia Noite Quem Quer prende-nos, sitia-nos, cerca-nos, naquele labirinto atmosférico e concêntrico em que no meio está inevitavelmente a morte. Uma cantilena infantil e funesta, podia ser, que até volta e meia tem um refrão: “Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar”. E ficamos sitiados neste romance redondo, que se passa em três dias, com 10 capítulos cada, e a páginas tantas já as nossas emoções foram sugadas pela ravina de onde se despenham burros descarnados ou o irmão mais velho, traumatizado da guerra, ou por aquele ralo da casa, com “a torneira da água fria com um Q gravado enquanto a torneira de água quente com um F pingava sem descanso”. Precisava de borracha, e ia pingando…
A voz predominante é a de uma mulher sem nome, de 52 anos (“são poucos os homens suficientemente corajosos para não terem medo de ser mulheres”, comenta o escritor). Já o houvera feito em Exortação aos Crocodilos ou em Não Entres tão Depressa nesta Noite Escura. E ela é uma mulher operada, não tem um peito, extraíram-no, ao peito e à axila (“que humilhação ter-me tornado uma criatura estendida diante de uma pessoa de pé”) e vem despedir-se da casa de praia, dos pinheiros, do mar, do irmão mais velho que aí perdeu a vida (“Há pessoas que demoram tanto tempo a deixar-nos”), de si própria, dos tempos pretéritos de uma infância onde talvez possa ter sido feliz. Apesar do pai bêbado, da mãe ríspida, do irmão suicida, do irmão surdo, que balbucia coisas impercetíveis – e a mãe para a vizinha do toldo do lado “já viu a minha cruz?”. E a casa, através do “borbulhar dos canos, os gemidos dos móveis e os estalos do soalho” comunica mais do que o irmão surdo: “vozes mudas que não param, não param, tanta gente a falar no interior das pessoas, ganas de cobrir as orelhas com as palmas”. Como a gotas que caiem incessantemente da torneira sem borracha.
E é uma família em estado de anonimato. Tudo é nomeado no livro, até o rinoceronte de brincar (Ernesto), a pastelaria (Tebas), a vizinha do lado (Tininha), mas de resto é o pai, a mãe, o irmão mais velho, o irmão surdo, e aquele eu da mulher, filha que perdeu um filho e um seio. Um irmão que foi à guerra e assistiu ao episódio pungente de uma mulher que andava com o bebé morto às costas, apodrecido há semanas. O livro é uma coisa que se apanha, como uma doença, uma gripe, comenta Lobo Antunes. A infância, a família, a morte, a guerra colonial, o cancro: vida e obra insitinguem-se. Ao ponto de quando falou do seu cancro numa crónica literária, os jornalistas assumiram-na como um facto citável. “Pensei que depois deste já podia morrer. Desde o primeiro livro que falo de mim, este é espantosamente autobiográfico. Fico com a sensação de me estar a conhecer melhor”.
“Até os escritores que admiramos,
sobretudo esses, nos irritam”
O encontro com um livro é como com uma pessoa – “é algo tão individual”. “O meu pai, por exemplo, sentia-se atraído por mulheres estrábicas convergentes”. Não quer dar opiniões, “só as dei até aos quinze anos, quando era parvo”. Mas convoca Borges que dizia que um livro que não tem charme não tem nada. “Musil é muito bom mas não tem charme nenhum e isso aborrece-me, pronto”. Em contrapartida Lobo Antunes emana charme, transborda charme. Mesmo quando aparece na avenida principal da chamada “cidade da risca ao meio” (Penafiel é trinchada a meio por uma estrada), com uma hora de atraso e o ar de quem vem dar “boa tarde às coisas aqui de baixo”. Ou quando desvia o sorriso, e os meninos das escolas já avisados pela professora: “olhem que ele é uma pessoa séria, não se ponham cá com acenos”. Mas eles estão encantados com “a fila dos pirilaus”, a forma como o escritor se refere à coluna de soldados nas picadas. Até quando assume aquele seu ar de atenção dispersada, solicitude arrastada, enfado condescendente, ternura ácida, Lobo Antunes tem imenso charme. E ele sabe-o, mesmo que as frases que mais repita em entrevista sejam “sei lá”, ou “quero lá saber”, ou “nunca pensei nisso”, e já tenha afirmado, como está fixado numa das muitas vozes mudas que enfeitam a avenida, entre a relva dos separadores centrais, a envolver sinais de trânsito, nas montras das lojas, em painéis ou post-its gigantes: “Um escritor é, por natureza, um carenciado de afeto”. O grande encanto do Festival Literário Escritaria é não se confinar a encontros e conferências “à sala fechada”, mas trazer as vozes do escritor, soltas, para o meio da rua, mudas, apesar de sugerir gritaria, e para serem manipuladas, e levadas para casa. Como as caixas de cartão ou os floors-signs que alertam para o perigo de contaminação literária e trazem agarradas um pedaço de crónica antoniana: “Edgar, meu amor, por favor não me deixes assim. Porque não me telefonaste? (…) O soutien que trago hoje tem rendas pretas e abre-se à frente, Edgar, vai ser canja para ti tirar-mo”.
Lobo Antunes transborda de charme quando nem presta atenção à resposta que ele próprio solicitou. O seu défice auditivo pode ser um excelente álibi. Quando faz que obedece à notável intervenção da professora Maria Alzira Seixo, numa das conferências, quando esta fala “no trânsito poético da frase”, que às vezes se suspende: “Não é cantilena para adormecer mas advertência para acordar. A frase não chega até ao fim. A vida não chega…”. E quando interpela… interpela imenso. Você acha que os meus livros são tristes? E nós a balbuciar umas sílabas como o irmão surdo do livro. Acha que o seu pai é velho? “Atou a ti ata”… Não achas que esta mulher tem olhos que questionam? E estaca perante um painel com a fotografia do Não é Meia noite Quem Quer que lhe foi oferecida pelo seu otorrino. E quando um retrato dos tempos de Angola, com que se cruza na avenida, lhe evoca, como uma madalena de Proust, “um fazendeiro colonial que tinha uma cubata enorme e que colecionava gigantescas caveiras de hipopótamo”. Ou quando nem pestaneja, quando passa por uma crítica visceral do Independente, que arrasam a sua escrita e lhe chamam energúmeno”. “Era um semanário que passava o tempo todo a dizer mal de mim, não sei porquê…”, explica a Maria Luísa Blanco Lledó, directora editorial do Museu Nacional Centro de arte Rainha Sofia, sua biógrafa e directora do suplemento cultural do El País. E quando recita poemas, em duelo com os miúdos do grupo de teatro, acompanhado à viola, sobre um fundo de granito amarelado pelos candeeiros públicos: um momento mágico. Às vezes, também ele, sai fora da sua personagem. Porventura a melhor por ele próprio criada.