HAVIA UMA CHAMINÉ. E UMA amurada. E um convés.
Era um barco a vapor, está bem de ver. Ronceiro, ainda a cheirar à revolução industrial. Adornava, da proa à ré, consoante a vaga. Tropicalizava-se o Atlântico, a cada milha navegada. A carreira do costume, da metrópole às colónias, nos anos trinta. A bordo, seguia um miúdo de calções. Zeca Afonso, a roçar os 3 anos. Sozinho, naquele lençol oceânico, que cobria, sabe-se lá, que assombros, que mostrengos. Instalada em Angola, a família mandara-o vir de Aveiro. Retirado do aconchego caseiro de primas e tias maternas, embarcou neste seu baptismo naval, entregue a um tio afastado, recém-casado, mais atento aos recolhimentos da lua-de-mel do que ao puto de calções. Com tanto de aflito como de desamparo, ancorou-se na mão de um velho missionário, o “homem das barbas brancas”, de quem nunca mais se há-de esquecer.
Quarenta anos depois. Sozinho, outra vez. Só que no lugar dos horizontes abertos, Zeca Afonso tem-nos apertados, entre as quatro paredes da cela, em Caxias.
E regressa a este ancoradouro de infância, “ao velho vapor ronceiro em que apenas um velho missionário se lembrara de que uma criança existia. O velho desapareceu, inesperadamente, num pequeno porto do Zaire e deixou-me só” escreveu em Prosema II. Mais cedo ou mais tarde, regressamos sempre à viagem inicial.
Como se fosse a marca antecipada do seu destino de andarilho, serve agora de cais de embarque para uma viagem no tempo, 20 anos passados sobre a sua morte (23 de Fevereiro de 1987). É a primeira etapa do concerto Redondo Vocábulo a oriente (Macau e Banguecoque), do sobrinho João Afonso e do pianista João Lucas. Em ano de homenagens: reedita-se uma colectânea (Farol Música), Cristina Branco editará em disco as músicas de Zeca que tem cantado com uma banda de jazz, no S. Luiz, em Lisboa, sucedem-se, por todo o País, concertos, debates, homenagens dispersas. Curtas para um autor de músicas que desafiam todas as genealogias e se tornaram património fundamental da cultura portuguesa. Zeca Afonso foi compositor, tão incatalogável na arte como na política. Foi anarquista por vocação, solidário por devoção, poeta por inquietação.
Também o irmão, João Afonso, dois anos mais velho, na biografia “fraternal” que escreveu, haveria de iniciar a narrativa de uma vida, com o levantar de âncora do Mouzinho (o nome do navio), e com aquele deambular pelo convés do pequeno navegador solitário. Convencido, diz, de que “Zeca bebeu aqui, nesta infância remota de embarcado alguma coisa do seu vezo de andarilho”. E acrescenta: “Zeca tem a divagação no sangue, é um espírito nómada, espartilhado entre as quatro paredes deste nosso espaço sedentário, comprimido contra o oceano.” Daí aquele seu ar abstracto, o seu temperamento aéreo, a sua propensão errante, o seu aparente desprendimento, o desassossego “de embalar a trouxa e zarpar “. “Dessa sorte de navegar, no mar ou em terra, se embeberam as suas canções, numa obsessão inconsciente.” “O Zeca era um génio. Não gosto de empregar esta palavra levianamente. Somos todos geniais. Pois. Mas o Zeca era ‘mesmo’ genial. E muito queria que isto não fosse um consenso mas um dado adquirido.
A diferença é subtil, mas fundamental” (nas palavras de Sérgio Godinho). Ou nas de outro compagnon de route, José Mário Branco: “Sempre cuidando (e com que mestria!) dos aspectos formais das suas canções, ele sobrelevava sistematicamente a sua potencial utilidade para as pequenas e grandes causas da Humanidade. Sentia-se mais à vontade na pele de testemunha activa do seu tempo do que na de um poeta prospector de eternidades.
Certamente por saber, como sempre souberam os grandes, que é sempre do solitário combate contra a matéria que acaba por nascer o sentido da obra criada.” Muita água haveria de correr por baixo do vapor Mouzinho, do primeiro ao último cais. Águas revoltas, outras enremoinha das, outras mais mansas, outras turvas…
Muitas vezes havia de navegar Zeca Afonso, abaixo da linha de água, afundado no lodaçal da ditadura. Muitas vezes, haveria de correr nos rápidos do PREC, a acudir às solicitações das colectividades, a “avisar a malta”, a arrastar a voz à custa de infusões de eucalipto. Muitas vezes, gritou “terra à vista”, outras tantas viu desaparecer o “bom porto” do seu horizonte. E tudo se acabou estupidamente, numa madrugada de chuva indecisa, sem nunca ter atracado na “cidade sem muros nem ameias” da sua utopia. “Alguma coisa do que sou e fui foi em viagem”, disse Zeca Afonso ao jornalista José A. Salvador. Cantor maldito, autor da canção-senha da revolução, foi alvo de silenciamentos sistemáticos, pela ditadura e também pela democracia. Confirmam-no os parcos registos, testemunhos das suas raríssimas passagens pela RTP ou as censuras explícitas nas rádios por ignorância, esquecimento, má-fé, ou pura pequenez.
“Sou, no fundo, fruto de muitas gentes, de muitos lugares, de muitos dissabores”, disse uma vez Zeca Afonso. A VISÃO traça-lhe agora o itinerário musical e sentimental, através de dez apeadeiros. Um percurso pisado “com as tamanquinhas do Zeca”, numa expressão roubada ao CD de homenagem dos Couple Coffee, que será editado em Março. A vocalista da dupla é Luanda, 38 anos, filha de Alípio de Freitas, o revolucionário celebrizado pela canção com o seu nome. Afinal, “somos nós os teus cantores”.
AVEIRO
“Este rio este rumo esta gaivota/ que outro fumo deverei seguir/ na minha rota?” UTOPIA, in Como Se Fora seu Filho (1983).
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de Agosto de 1929, na “parte da cidade voltada para o realismo e para o mar”. Filho de um magistrado e de uma directora de escola infantil, foi irmão do meio de três. Colocado o pai em Angola, a família deixou-o pequeno, confiado a uns tios.
De saúde frágil, não o queriam os pais em terras tórridas e carregadas de paludismo.
Até que as precauções cederam às saudades e a mãe mandou-o vir. E lá segue Zeca, desamparado, no tal Mouzinho, ao encontro de uns pais e irmão de quem não se lembra e de uma irmã que, entretanto, aparecera. A casa onde nasceu era escola (dirigida pela mãe), passou a banco; agora, confirma o irmão, já não existe. Só há três anos a autarquia deu o seu nome a uma rua de um bairro novo de Aveiro. Aliás, não faz tenções de participar em qualquer homenagem.
ANGOLA
“Um homem novo/veio da mata/ de armas na mão/ não é soldado/ de profissão/ É guerrilheiro/ na sua aldeia/ A mãe o diz/ duma fazenda/ faz um país” UM HOMEM NOVO VEIO DA MATA, in Enquanto Há Força (1978)
“África é uma pátria mítica para mim, antes de ser pátria política, uma África revolucionária e socialista.” As trovoadas, que fendiam os céus e incendiavam o capim.
As travessias dos rios em barcaças. As nuvens de gafanhotos. As viagens pelas picadas.
A bicharada oculta pelo mato. As febres quartãs. Os gaviões que filavam de alto os pintos e desafiavam as fisgadas dos irmãos Afonso… Do Cuíto, a família mudou-se para a paisagem domesticada de Luanda, ainda assim cheia de potencialidades para uma infância à solta, em horizontes rasgados. Depois ainda há-de seguir para Moçambique, onde, conta o irmão João Afonso à VISÃO, Zeca colheu as mais marcantes memórias infantis, como os mergulhos do fim de tarde ou o sabor de uma manga verde.
BELMONTE
“Gastão era perfeito/ conduzido por seu dono/ em sonolências afeito/ às picadas dos mosquitos” GASTÃO ERA PERFEITO, in Venham mais Cinco (1973)
O dealbar dos anos 40 vem encontrar o “menino zequinha” como porta-bandeira, a fazer a saudação nazi, de calças à golfe, bivaque e um cinturão com um grande S (farda da Mocidade Portuguesa), a marcar o passo no pelotão de miúdos pelas ruas de Belmonte. Na terra e na família pontificava o tio Filomeno (que lhe inspirou a canção em epígrafe), presidente da Câmara, comandante da Legião, homem de ardente vassalagem a Salazar, admirador de Franco e germanófilo. “Londres comme Cartago sera détruite!”, assim soavam as emissões nocturnas na “telefonia” lá de casa. Quase todas as noites partia um comboio para a Alemanha hitleriana. Era o negócio do volfrâmio. Mas disto, Zeca, com 10 anos, ainda não percebia nada. Só sabia que aquele regresso à metrópole (por causa dos estudos) foi sentido como um degredo.
Ainda por cima, sendo ele ali visto como “um menino agasalhado”, sobrinho do senhor doutor, que não podia participar nos jogos com os outros miúdos da vila.
Fez aí a quarta classe, espartilhado entre a chateza dos dias, o acanhamento da paisagem, a monotonia das missas, paixonetas por declarar, e uma tia que lhes racionava a água, de guarda ao jarro, atrás da porta, “como um índio sioux”: “O pior ano da minha vida”. Da escola guardava recordações traumatizantes, “enxurros monumentais de porrada”. Zeca era distraído, patologicamente distraído. O professor tinha o hábito de o suspender pelas orelhas, “como se aquela tormentosa ascensão tivesse o mérito inverso de o fazer descer à terra”, conta João Afonso: “A imensidade africana que Zeca trazia na cabeça e nos sentidos já não cabia nos parâmetros concretos do didactismo escolar.”
COIMBRA
“Águas/ das fontes calai/ Ó ribeiras chorai/ Que eu não volto/ a cantar” BALADA DO OUTONO in Baladas e Canções (1967)
Noitada na sala de bilhar do Café da Brasileira, em Coimbra. Muitas das canções de Zeca Afonso hão-de nascer assim, instigadas pelo colectivo, e pelo entusiasmo, noite fora. É preciso alguém que o acompanhe à viola. Zeca liberta as canções dos “pruridos coimbrões”, do lirismo convencional e lamechas, do narcisismo autocomplacente dos que envergam capa e batina, como se fossem capas de cavaleiro andante. Levanta-se uma urgência súbita: precisava-se de alguém que tocasse viola. Ergue-se um adolescente que, por acaso, estava ali com o pai. É o princípio de uma amizade e de uma parceria de oito anos; “uma das mais enriquecedoras experiências da minha vida”, conta hoje Rui Pato, 58 anos, médico pneumologista, presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Coimbra, que começou, nessa mesma noite, a acompanhar Zeca Afonso. “Imagine-se o que representou para mim, com apenas 14 anos, essa oportunidade de lidar de perto com dois mestres como Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira.” Ele estava no 4.º ano do liceu, Zeca já homem feito, licenciado (em Histórico-Filosóficas), já defendera a sua tese sobre Sartre, já se tinha casado e separado (dois filhos), feito a tropa… Já tinha corrido o circuito das repúblicas e da boémia coimbrã, já enveredara pelo semiproletariado das aulas e explicações, num regime de sobrevivência endurecido, já estava debaixo de olho da PIDE. “Tenho uma soma de experiências que daria para uma novela dostoievskiana”, escreve em 1962.
Zeca e Pato partem pelo País, em concertos (sobretudo em colectividades populares e associações de estudantes), à boleia ou de comboio (“havia sempre alguém que nos dizia ‘apareçam na estação, na composição tal…’, e estava lá sempre um camarada que nos transportava de borla”). Dentro da caixa da viola seguiam Avantes! e outros jornais clandestinos. A visão poético-estudantil, “do herói da capa e batina”, esmoreceu à medida que tomava contacto com as desigualdades sociais. A sua música também mudou. “Ele costumava dizer que não queria o canto amarrado nos arames da guitarra “, conta Rui Pato. Foi o momento de viragem de Zeca Afonso, de rebelião, quase.
“Carrego essa mágoa há anos, a de eu próprio não ter tido a clarividência suficiente para perceber, na altura, o passo histórico que se estava a dar”, continua.
MAFRA
“Ao cair da madrugada/ No quartel da guarda/ Senhor General/ Mande embora a sentinela/ Mande embora e não lhe faça mal” RONDA DOS PAISANOS, in Baladas e Canções (1967)
A tropa foi o buraco negro na sua biografia. Um tempo vácuo. Aborrecia-se mortalmente, não atinava com a culatra, com o percutor, o dente de armar, nem com formaturas e rotinas pautadas a toque de clarinete…
“Fui o menos classificado de todo o curso por falta de aprumo militar”, contava. Limitou-se a criar anticorpos, nas palavras do irmão, “contra todas as formas de constrangimento pessoal”. A incompatibilidade com as tecnologias era quase genética. Nunca usou relógio, só muito tarde conseguiu acertar nos botões REC e PLAY do gravador, inventou um sistema de pautas para consumo próprio. E quando, anos mais tarde, em Moçambique, se meteu a tirar a carta de condução, o instrutor, depois de tantos alheamentos e ausências, voltou-se para ele e perguntou: “O senhor é assim a modos que poeta, não é?” Outra vez, entrou em casa, dirigiu-se ao frigorífico e sentou-se a comer pudim.
E estranhou: a mulher não costumava fazer pudim… Tinha entrado na casa de um vizinho.
ALGARVE
“Somos filhos da madrugada/ Pelas praias do mar nos vamos/ À procura de quem nos traga/ Verde Oliva de flor no ramo”, CANTO MOÇO in Traz Outro Amigo Também (1970)
João Afonso está convencido de que esta música terá nascido dos passeios de barco que o irmão fazia com os amigos António Barahona e Luíza Neto Jorge pelas praias do Algarve. Zeca falava de “fase de euforia, uma das mais felizes da sua vida”. Na Fuzeta, monta a sua “tenda contemplativa “, percorre quilómetros à beira-mar, às vezes vai directamente para a escola, a pingar. Umas das suas grandes paixões, o ensino. “Queria pôr os alunos a funcionar como pessoas, incutir-lhes o espírito crítico, fazer com que exercitassem a sua imaginação à margem dos programas oficiais.” A cantoria, como lhe chamava, nunca a “superlativizou”: “Quando me dizem que aquilo que faço tem interesse, enfim, respeito a opinião das pessoas, e digo que sim senhor, tem interesse…”, explicou ao jornalista Viriato Teles. Os algarvios viam passar o forasteiro, despassarado, com olhos de sonâmbulo, abismado pela paisagem. Desconfiados ainda mais, quando este começou a namorar Zélia, uma filha da terra, sua futura mulher (de quem tem mais dois filhos). Foi um namoro clandestino, “à siciliana”, em cada esquina um mirone, em cada rosto um informador.
GRÂNDOLA
“Em cada esquina um amigo/ Em cada rosto igualdade” GRÂNDOLA, VILA MORENA, in Cantigas do Maio (1971)
Uma única vez Zeca Afonso se deslocou à vila alentejana, antes de compor a canção.
Foi lá actuar, com Rui Pato, em 1964, a convite da Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense: “Um local quase sem estruturas nenhumas, com uma biblioteca de evidentes objectivos revolucionários, uma disciplina generalizada e aceite entre todos os membros, o que revelava já uma grande consciência e maturidade política.” Gravou a canção que deu notoriedade àquela terra, num castelo-estúdio dos arredores de Paris. Os passos iniciais foram captados na gravilha, às três da manhã. Cantou-a pela primeira vez a na Galiza e, quando soube que fora senha para o arranque dos capitães revoltosos de 1974, n ia 25 de Abril, já Zeca Afonso tinha arrancado para o Carmo, misturado entre as chaimites e os arroubos da massa anónima, a assistir ao último acto do Estado Novo. “Só mais tarde, quando recomeçaram os ataques fascistas e a Grândola era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo, me apercebi de tudo o que ela significava e naturalmente tive uma certa satisfação.”
MOÇAMBIQUE
“O barco foi andando/ e a Nanga vi/ Foi a saudade aumentando/ longe daí/ A gente/ na minha terra não canta assim/ como eu ouvi” CARTA A MIGUEL DJÉJÉ, in Traz Outro Amigo Também (1970).
Duas encomendas do correio faziam estalar a mais completa felicidade na casa dos sobrinhos de Zeca (filhos da irmã mais nova, Mariazinha), em Moçambique.
“Os livros do Tintin e os discos do meu tio”, conta João Afonso, 40 anos, também cantor. Um dia, apareceu-lhes em carne e osso. Regressa às paisagens indomesticadas da infância, aos cheiros, às cores, aos ritmos, mas era-lhe doloroso, trabalhar numa ordem social que abominava: “O meio do branco colonizador.” Dava aulas aos meninos de família e fora do período lectivo ministrava as suas lições o único branco a fazê-lo numa associação de negros. “Infiltrei-me em alguns meios e ia conseguindo, com as minhas cantigas, dar os meus habituais recados.” Ao olhos da PIDE, Zeca passou de sujeito incómodo a tipo perigoso.
CAXIAS
“Era um redondo vocábulo/ Uma soma agreste/ Revelavam-se ondas/ em maninhos dedos/ polpas seus cabelos/ resíduos de lar” ERA UM REDONDO VOCÁBULO in Venham Mais Cinco (1973)
Até que um dia, já em Portugal, a PIDE bateu-lhe à porta e o filho mais velho veio abrir.
Há muito que estes agentes da (des)ordem lhe atazanavam a vida e obrigavam o cantor andarilho a tornar-se ainda mais andarilho, a mudar de poiso constantemente. Embicaram com uma quadra (cantada mas nunca gravada) que lhes dizia directamente respeito “Na Rua António Maria / da primaz instituição/ vive a maior confraria/ desta válida nação”, passando ao largo de outras músicas com óbvias e gravosas referências, como o Avô Carvernoso ou o Vejam Bem… A PIDE não consegue catalogá-lo, nem no PCP, nem na LUAR, nem enquanto católico de esquerda. Mais tarde, numa altura em que os tempos não estão para independências pessoais, em que é quase obrigatório ter rótulos, e andar de cliché atrelado, faz a sua afirmação de independência política: “Eu sou o meu próprio comité central.” Era ele mesmo, sem etiquetas. Tal como a sua música. Confinado às quatro paredes da cela durante 21 dias, alarga os horizontes através do lápis e do papel. Escreve poemas e prosemas, de labirínticas significações, a letra do Redondo Vocábulo, e a do Bombons de Todos os Dias, uma música “de um surrealismo afonsino marcado”, que se manteve inédita até ao ano passado, quando o sobrinho João a resgatou de uma velha cassete caseira, guardada por um amigo galego, agora gravado no novo disco Outra Vida.
AZEITÃO
“Estamos na Europa civilizada/ já cá faltava uma maison/ pour la patrie p’lo Volskswagem/ acabou-se a forragem/ Viva o Patron!” DÉCADA DE SALOMÉ, in Galinhas do Mato (1985)
Porta aberta na casa de Zeca Afonso, em Azeitão. As pessoas entravam, instalavam-se na sala e traziam um amigo também.
Nos últimos tempos, quando a doença (esclerose lateral amiotrófica) já lhe tolhia os movimentos e a fala, Alípio de Freitas é um dos convivas naquela sala. Faz-lhe um relatório completo das notícias, dos acontecimentos, das fofocas políticas… O andarilho já não pode ir ao mundo, vai o mundo até ele. Ainda que aquele não fosse de todo o mundo com que sonhou, “Zeca continuava a achar que era possível mudá-lo”. Era um “utópico céptico”, nas palavras de João Afonso. As portas (as de Abril) fecharam-se, achava ele, mas continua a comportar-se como se as janelas também servissem de saídas de emergência, “como se a revolução fosse possível”. Deixara para trás um período de febril agitação, de peregrinação por todo o País, em concertos pelas aldeias fora, “quando a população se juntava para resolver o problema da escola ou de calcetar a rua”. Levou a solidariedade ao limite, tocou em condições inverosímeis, esfalfou-se, extenuou-se, esforçou a garganta, passou noites em branco, teve por única compensação a satisfação militante. Alípio era amigo, não de longa data, “mas era como se fosse”. Não se conheciam quando Zeca compôs a música sobre o revolucionário português preso, torturado, há anos incomunicável na terrível fortaleza de Santa Cruz, na Baía da Guanabara, Rio de Janeiro (Alípio de Freitas in Com as Minhas Tamanquinhas, 1976). Quando finalmente, em 1980, é libertado, Alípio, hoje com 78 anos (a idade que Zeca teria), professor universitário e presidente da Associação José Afonso, foi ao seu encontro: “Não dissemos nada. Abraçámo-nos. Com a nítida sensação de que já nos conhecíamos… Foi como se nos tivéssemos reencontrado após uma longa viagem.” Provavelmente aquela em que havia uma chaminé, uma amurada e um “missionário das barbas”. A primeira viagem aquela a que todos regressamos.