Lista, mais ou menos aleatória, e sem qualquer sustentação estatística, de seis coisas que, pelo menos uma vez na vida, não devem ser feitas por interposto Youtube, CD ou DVD:
*Ver ao vivo as pirâmides de Gizé;
*Contemplar a Guernica e seus negros e brancos pavores, no Reina Sofia;
*Sentir no Corcovado os morros extraterrestres do Rio de Janeiro; Atravessar a ponte D. Carlos sob o Moldava, em Praga, debaixo do olhar das suas 30 estátuas e regressar pelo mesmo caminho;
*Subir a Machu Picchu;
*E assistir a um concerto de Bobby Mcferrin, o cantor londrino radicado em Nova Iorque, conhecido por ter uma extensão vocal de quatro oitavas na garganta, uma caixa de ritmos no peito e uma capacidade de improvisação única no mundo – que passa pelo jazz, sempre, mas pode ir parar ao Avé Maria de Bach ou ao Bolero de Ravel. E passar, esvoaçante, pelo Black Birds dos Beatles.
E aconteceu numa noite de domingo, dia 3, em Guimarães, num concerto de aquecimento ou de antecipação da Capital Europeia da Cultura, escutar-se o dardejar das asas do pássaro negro, por cima de duas mil cabeças silenciosas, no escuro do pavilhão multi-usos.
Há décadas que Bobby Mcferrin (hoje está nos 60) se tornou num one-man-show. Não traz nada na manga. E, no entanto, todo ele é sons e ruídos, “ofegâncias” e melodias, e notas que se soltam quando expira mas também quando aspira.
Só precisa de duas coisa. Não, de três: o seu extraordinário poder vocal e a noção única de ritmo, o espaço que faz propagar as ondas sonoras e, em terceiro (só em algumas ocasiões), um apoio de back-ground, mero pano de fundo – que tanto pode ser do amadorismo do público público que entoa à sua batuta, como do ultra-profissionalismo das mais prestigiadas orquestras sinfónicas, como tantas dos Estados Unidos ou do Canadá.
E essa voz de alta amplitude, numa escalada de notas veloz, que consegue produzir a ambivalência coral de acordes e harmonias, simula instrumentos, ora o baixo, ora a percussão, ora o piano, ora o sopro de um sexofone ou o descontraído assobio… A voz, que seguramente não foi Deus que lhe deu, mas para tal terão contribuído os genes paternos – é filho do renomado barítono Robert McFerrin (o primeiro cantor negro de prestígio na ópera). Foi assim que Mcferrin compareceu no palco de Guimarães. Ele, a voz, e de vez em quando a colaboração fortuita da audiência – e uma multidão, sempre, ou quase sempre, canta afinada. E essa talvez seja uma das coisas mais maravilhosas do mundo. Esta capacidade de nos entendermos usando um código de notas musicais e suas variantes. Se calhar o Spielberg nos seus Encontros Imediatos, é que tinha razão: até com extra-terrestres se pode comunicar se usarmos esta linguagem mais inter-galaxial (dizem que com a matemática é mais ou menos a mesma coisa).
A apresentar o seu último álbum de inéditos VocalBularys (depois de oito anos sem editar), Mcferrin pôs pessoas a dançar e a cantar de improviso em palco de improviso, com o seu dom de encantador de serpentes tão vocais quanto viscerais- as pulsações cardíacas também contaram. Aliás ali há fibras da laringe, língua, lábios, boca, véu palatino, mas também nervos, tórax, diafragma, músculos…
Membros da assistência saltaram para o palco e de lá saíam duetos, melodias, invenções, diálogos musicais, harmonias, desarmonias, muitas gagalhadas, muitos abraços, um atrevido “i live you Bobby” e momentos únicos- irrepetíveis. Um espectador dá um nota e sai de lá um Hey Jude, “às vezes pego numa nota e não consigo parar…”. Como se fosse aqueles maestro de orquestras que nem conseguem ouvir os pássaros cantar, que começam logo a reparar nos “mis bemóis” que eles soltam e se chilreios do bando não produzem desafinações.
O que de mais extraordinário, saiu desta noite em Guimarães foi também a forma como a assistência reconhecia as versões, reduzidas, e dissecadas até ao osso por Mcferrin. Já não é um cover de um canção conhecida, é uma versão de uma versão de uma versão, e ele limita-se, num mininalismo vocal, a soltar as notas, pequenas peças de uma puzzle, mínimas e indispensáveis pistas para as canções serem reconhecidas e chegarem ao refrão. E as canções, por mais voltas e desvios, por mais omissões e sobressaltos, acabam sempre “chegando” à colcheia onde as esperam.