Se a visão da ditadura norte-coreana do canadiano Guy Delisle em “Pyongyang” (Devir) não evita um cunho de visita turística em tom irónico, em “O árabe do futuro” do francês Riad Sattouf (Teorema) temos um relato autobiográfico extenso (este primeiro volume cobre os anos de 1978-84) de uma infância passada entre França, Líbia e Síria (e Argélia) realizado pelo filho de uma francesa e de um professor universitário sírio formado em França, mas que quis voltar às origens para ajudar a promover o pan-arabismo (hoje “representado”, dramaticamente, pelo Estado Islâmico).
O autor já tinha glosado a sua herança multicultural (“Ma Circoncision” de 2004) mas este é um trabalho com outra dimensão. Claro que o tom da obra é reflexo de escolhas posteriores, dado a adolescência e toda a vida profissional terem sido passadas em França; de resto sem isso dificilmente “O árabe do futuro” existiria. E é também evidente que, para além dos factos relatados, não se pode esquecer que esta é a visão/memória (atualizada) de uma criança, não dissociável do enquadramento familiar. Nunca seria pois uma narrativa neutra (como não o é “Pyongyang”), e há um protagonismo subterrâneo dos dois progenitores. Mais óbvio no caso do pai, Abdel-Razak, um poço imenso de contradições que não resolve, porque delas não se apercebe. Oscilando entre a determinação e a fanfarronice, entre o modernismo e o fascínio por ditadores fortes cujo papel messiânico considera inevitável (Muammar al-Gaddafi, Hafez el-Assad, Saddam Hussein), Abdel-Razak é a personagem mais fascinante de “O árabe do futuro”; tão desconfortável na Bretanha dos sogros, como no seio de uma família que desconfia das suas escolhas e evolução. Embora não seja tão focada, as angústias de adaptação aos países árabes de Clementine, a mãe de Sattouf, vêm à tona em situações breves, mas cruciais, que chegam e sobram para, com algum pudor, vincar uma mensagem que é prolongada no percurso do próprio autor. Sem dominar a cultura ou a língua, e também por via dos cabelos loiros, sobre mãe e filho caem os piores insultos possíveis (“judeus”, desde logo), e, apesar de algum esporádico carinho familiar, uma integração plena parece quimérica. E é por aí, no olhar apenas semi-interno, que se entende o tom do livro, distinguindo-se nesse aspeto crítico de “Persepolis”, de Marjane Satrapi.
Riad Sattouf não é (como, por exemplo, Joe Sacco) um jornalista que queira fazer sobressair conhecimentos de História global, ou interpretar o que vive à luz de política geoestratégica; nem tem o peso da miragem nostálgica e esperança no futuro que alimenta Abdel-Razak. Fora alguns momentos as experiências que encontra na Síria e na Líbia são (até por oposição com as estadias em França) bem mais negativas do que positivas, incluindo desorganização, crueldade, sujidade, racismo, culto da personalidade, censura, corrupção e falta de tudo. E o autor pouco contextualiza, explica ou desculpa, apenas regista. Um retrato que o seu excelente traço, mais versátil que o de Guy Delisle e muito eficaz a traduzir exageradamente o cerne realista numa base caricatural, torna particularmente demolidor.
Como se disse, este é um testemunho direto e enviesado. Mas neste primeiro volume tem o mérito preocupante de sinalizar que, independentemente de eventuais responsabilidades, pouco terá mudado nos países árabes, a não ser para pior. A tentação para radicalizar e separar ainda mais pode ser pois o que o futuro nos reserva. E não só aos árabes.
O árabe do futuro (Ser jovem no Médio Oriente, 1978-1984). Argumento e desenhos de Riad Sattouf. Teorema. 160 pp., 19 Euros.