Testemunhos na primeira pessoa sobre a Coreia do Norte dos Kim, e sobre a Líbia de Kadhafi e a Síria dos Assad, um relato externo e um (semi)interno, ambos iluminam aspetos da gestão de espectativas e controlo de populações que ressoam profundamente hoje. Embora possam ser narrativas enviesadas, o seu interesse é inegável, com destaque para a preocupante (não) promoção/possibilidade de entendimento mútuo que atravessa ambos.
A história por detrás de “Pyongyang” é curiosa, por ser reflexo da globalização num país não globalizado. Nos desenhos animados tradicionais o grosso do trabalho (os desenhos de ligação) é feito fora dos estúdios ocidentais, onde a mão de obra seja mais barata. Mas, dadas as diferenças culturais nas representações de personagens e interpretação de expressões, os estúdios têm de enviar representantes para supervisionar o trabalho dos subcontratados. Depois de ter tido essa missão na China (relatada no livro “Shenzhen”, de 2000), os preços ultracompetitivos da Coreia do Norte levariam Guy Delisle à capital dinástica dos Kim, na altura liderada por Kim Jong-Il. O relato dos dois meses que passa em Pyongyang, a que acrescenta um enquadramento histórico e alguns factos e números, é simultaneamente previsível e deprimente. Previsível porque sublinha a imagem de ditadura asfixiante, megalómana e incompetente para além da sua autossustentação que existe no Ocidente. Deprimente pelo mesmo motivo, porque os negócios continuam (como sempre) e a extensa ajuda humanitária parece apenas servir para ajudar o regime.
Claro que as principais críticas ao livro focam três pontos: que resulta de uma experiência curta intensamente vigiada, que o autor partiu com opiniões pré-estabelecidas (o seu livro de viagem foi “1984”, de George Orwell), que não evita um tom de superioridade moral. A resposta óbvia é que, se Delisle foi apenas autorizado a ver o que lhe deixaram da vida da Coreia do Norte (ou seja, o melhor possível), a realidade só pode ser pior. Na verdade, se apenas vinte por cento dos casos que relata fossem verdadeiros já seria preocupante. O espanto do autor vai mais no sentido do quanto a caricatura presumida se plasma na realidade limitada que vislumbra. A inevitável interrogação é de que modo, e com que extensão, os habitantes para lá dos dois com que interage mais (o tradutor e o guia) abraçam a realidade construída do regime, incluindo efabulações históricas que seriam hilariantes se as consequências não fossem trágicas. Um caso de mentiras repetidas até à verdade final, de uma cegueira coletiva e seletiva que será caso de estudo quando (e se) se puder estudar. E da qual ninguém está completamente livre, por mais livre que se julgue.
Do ponto de vista gráfico nota-se um esforço do autor no sentido de domar o seu traço caricatural a um registo mais realista; um tom exagerado é exatamente o que “Pyongyang” não necessita. Embora o desenho de Delisle seja bastante mais limitado do que, por exemplo, o de Riad Sattouf, há consciência que, se o exagero pode ser usado para efeitos dramáticos (o que sucede nalgumas representações simbólicas), tem o perigo óbvio de poder menorizar o tema. Numa altura em que se tenta perceber que diálogos são possíveis (ou úteis) esse é um risco que não se pode correr.
Pyongyang. Argumento e desenhos de Guy Delisle. Devir. 180 pp., 22 Euros.