Fora exceções, como o brilhante Salazar de Miguel Rocha e João Paulo Cotrim (Parceria A.M. Pereira, 2006), a matriz de base tente a ser uma representação realista e um ritmo narrativo decalcados de histórias de aventuras. A questão é que se acrescenta um modelo de pedagogia alicerçado na abundância de texto explicativo que se enquadra mal na matriz, constrangendo a história de diferentes maneiras; sobretudo quando cabe às personagens o ónus de transmitir dados importantes em falas irrealistas. Nas últimas décadas a maioria dos trabalhos deste género tende a concentrar-se em obras encomendadas, que contam a história de um lugar ou figura marcante. E, se usam a linguagem da banda desenhada para cumprir de forma eficaz a função básica de informar, a verdade é que nunca são particularmente estimulantes, até porque, para além do uso de um modelo híbrido, tendem a privilegiar retratos simplistas.
Só por isso a abordagem que Pedro Massano faz à Batalha de Aljubarrota em A batalha: 14 de Agosto de 1385 (Gradiva) é digna de registo. Não que fuja à matriz realista, pelo contrário. Na verdade Massano é um notável desenhador, muito acima da média para o género, em cujo trabalho sobressaem a pesquisa, a atenção ao pormenor e a capacidade de sugerir eficaz e subtilmente emoções e movimento, criando aquilo que até se pode considerar uma representação operática hiper-realista. Por outro lado, se a obra não se demite de uma vertente épica e patriótica, o cingir do argumento a dados históricos verificáveis e a fontes insuspeitas (por exemplo, não se referencia a lendária padeira de Aljubarrota) ajuda a limitar a habitual abordagem dicotómica dos portugueses contra espanhóis, “nós” contra “eles”. Um dos grandes méritos de A batalha é, de resto, desmistificar a noção de “nós” neste caso.
Embora não possa entrar, por motivos óbvios, em todos os pormenores que rodearam o conflito, uma das grandes virtudes deste livro é lembrar a variedade de combatentes em ambos os campos, incluindo irmãos de Nun’Álvares Pereira dos dois lados. Tentando justificar escolhas que o resultado final e o tempo fazem parecer irrelevantes ou óbvias, quando não o seriam tanto no contexto histórico. Na verdade, embora Massano consiga individualizar e tornar expressivas de maneira brilhante todas as personagens (mesmo figurantes), para alguém menos conhecedor apenas a cruz de São Jorge distingue combatentes, as grandes diferenças estandardizadas nos uniformes, que tornariam essa tarefa óbvia, viriam mais tarde. Por esse motivo, do ponto de vista editorial talvez se pudesse ter acrescentado um texto explicativo mais abrangente a contextualizar a complexidade de situações e relações entre personagens. Até porque, numa excelente escolha do ponto de vista dramático, o livro foca apenas e exclusivamente o dia da batalha, sentindo-se que Massano não quer cair na armadilha de introduzir toda a informação prévia relevante do modo forçado, como sucede em obras similares. Traduções de algumas falas em inglês/francês/castelhano e um uso de notas numeradas (em vez de asteriscos) também teria sido útil.
Mas tudo isto são detalhes. O que fica deste livro é um notável vigor narrativo, que usa as páginas duplas com eficácia e dramatismo, e que consegue transportar o leitor ao âmago da batalha de Aljubarrota, quer do ponto de vista do conflito em si, quer em termos das escolhas políticas e militares que levaram a que decorresse precisamente naquele espaço/tempo, daquele modo, e com aquele resultado. Provando, se fosse preciso, que os problemas comuns à maioria dos trabalhos de banda desenhada histórica não se devem ao modelo-base, mas ao talento para o respeitar. E superar.
A batalha: 14 de Agosto de 1385. Argumentos e desenhos de Pedro Massano. Gradiva, 90 pp., 14,90 Euros.