“Kassumai” de David Campos (Chili Com Carne) retrata o tempo que o autor passou a trabalhar numa ONG na Guiné-Bissau; “Comic-Transfer” (Polvo) é num diálogo cruzado entre o alemão Till Lassman e o português Ricardo Cabral, em que ambos traçam retratos urbanos em forma de diário gráfico.
“Kassumai” é um livro muito interessante, captando instantes do percurso pessoal do autor à medida que se adapta a um país pobre, muito mais estranho do que aquilo que contava. Campos mistura relatos simples de vida diária e do difícil trabalho voluntário desenvolvido, com momentos de contacto intenso e genuíno, ou de pura descoberta “on the road”.
No entanto, sendo um bela iniciativa de uma editora fundamental, sente-se em “Kassumai” a falta, precisamente, de trabalho editorial, um conceito ainda algo alienígena em Portugal. Isto nada tem a ver com incorreções gramaticais, mas antes com o ajudar a tornar o diário de David Campos numa reflexão mais abrangente, que incluísse uma contextualização melhor do trabalho desenvolvido pela ONG, da situação/História da Guiné-Bissau, mesmo das pessoas que surgem na narrativa, e que permanecem indecifráveis. Sente-se algum pudor, mas a verdade é que o livro não se liberta de uma visão pessoal (a todos os níveis), e é pena, porque se trata de um excelente ponto de partida, e o estilo do autor (entre o fotográfico e o esboço) é particularmente eficaz a retratar as distorções que a memória faz no real.
“Comic-Transfer” é parte de um projeto mais alargado do grupo Urban Sketchers, presumindo-se que o apoio do Goethe-Institut Portugal (e do Turismo de Portugal) tenha privilegiado o diálogo luso-alemão entre Cabral e Lassmann, que inclui registos em Berlin, Hamburg, Porto e Lisboa. Desde logo os estilos, caricatural (Lassmann) e realista (Cabral), complementam-se muito bem, e tornam o livro um notável objeto. Na verdade, o diálogo (real e gráfico) entre os autores no início, no qual discutem técnicas, estilos e abordagens (e retratam as mesmas coisas), é muitíssimo interessante, com destaque para o debate sobre o uso que Cabral faz da fotografia. A questão é que, nas viagens que ambos depois realizam não é claro o que retiram dos diferentes locais, para além da superfície (literal e figurada). Talvez também porque o espaço (dividido por localidades e autores) não ajude a definir uma dimensão adicional, ficando-se, tal como em “Kassumai”, pela vertente menos transmissível.
Em “Israel Sketchbook” de Ricardo Cabral havia todo um contexto subjacente, mesmo que o autor o não mencionasse diretamente (e até talvez por isso) que contextualizava a obra. De resto, ligações com o autor em “Comic-Transfer” surgem após a visita ao Museu Judaico em Berlim ou aos restos do Muro, no sentido em que as emoções (e as razões que lhes estão subjacentes) são decifráveis. Um exemplo equivalente em “Kassumai” é dado quando David Campos revela o choque de abrir o frigorífico em casa dos pais no regresso, com comida suficiente para várias festas na Guiné. São estes momentos que, transformando o pessoal no global, definem o que de mais interessante se faz em banda desenhada.
Kassumai. Texto e desenhos de David Campos. Associação Chili Com Carne (chilicomcarne.com) 116 pp., 10 Euros.
Comic-Transfer. Texto e Ilustrações de Till Lassmann e Ricardo Cabral. Polvo 170 pp., 20 Euros.