Não estou aqui a chamar à colação a característica óbvia de o desenho em BD introduzir, de imediato, uma vertente claramente não-realista, maior ou menor, no sentido em que as representações desenhadas serão sempre aproximações. Talvez o exemplo mais paradigmático a este nível esteja relacionado com a classificação formal do multipremiado “Maus” de Art Spiegelman (1991), uma obra baseada nas experiências do seu pai no campo de concentração de Auschwitz, mas em que os judeus eram alegoricamente retratados como ratos, os nazis como gatos, os polacos como porcos e os americanos como cães. Quando Spiegelman pediu para o livro ser incluído na categoria de “não-ficção” nas listas de vendas do New York Times (argumentando que o facto de estar na lista reservada a “ficção” poderia implicar uma forma de negação do Holocausto) um editor terá alegadamente afirmado: “Vamos a casa de Spiegelman, e se um rato gigante nos abrir a porta mudamos a classificação do livro!”. Mas, como disse, não é disso que se trata. A questão é que, por mais baseada em acontecimentos reais que esteja, uma obra tem de fazer escolhas e concessões, estejam elas relacionadas com preencher espaços em branco que o autor desconhece, ou utilizar técnicas de obras de ficção para ajudar a criar uma narrativa focada, lógica, excitante, ou mais comprometida com um determinado ponto de vista. Esteja o autor consciente disso ou não, a realidade é sempre trabalhada.
Um dos livros mais interessantes deste tipo surgidos nos últimos anos é “Les ignorants: Récit d’une initiation croisée”, do francês Étienne Davodeau. Publicado em 2011 infelizmente apenas o pude ler em 2013, e por uma razão simples: as edições em versão inglesa são sempre bastante mais baratas (que as francesas ou portuguesas…), algo que, nesta altura, pesa ainda mais.
Embora também assine bons trabalhos de ficção “puros”, Davodeau é um dos autores mais relevantes na banda desenhada de reportagem/ensaio, focando-se, nomeadamente, na militância de movimentos sociais (“Rural!”, “Les mauvaises gens”). Mas “Les ignorants” vai um pouco mais além, porque é um trabalho que trata a própria criação e fruição de banda desenhada. O livro é, no fundo, um longo diálogo entre o autor de BD Étienne Davodeau e o agricultor/enólogo do vale do Loire Richard Leroy; e que resulta numa aprendizagem mútua, em que os processos de criação são descritos em detalhe e em paralelo ao longo de um ano, focando as muitas semelhanças existentes. Davodeau aprende o mundo vitivinícola, Leroy o da banda desenhada.
Desde logo um comentário: o título da edição inglesa é mal escolhido. “The Initiates: A Comic Artist and a Wine Artisan Exchange Jobs” usa o subtítulo francês para tentar suavizar o verdadeiro alcance do título original (que se refere, bem, a “Ignorantes”, não a “Aprendizes”). Isto porque se há coisa que Davodeau e Leroy não fazem é trocar de lugar. Na verdade o diálogo só é possível porque ambos professam filosofias comparáveis. Davodeau é um autor bem sucedido com um universo criativo próprio e interesses fortes, que não ambiciona ser autor do novo “Astérix” ou trabalhar para a Marvel; Leroy um pequeno produtor renomado, que pretende trabalhar da maneira mais não-invasiva possível, utilizando conceitos de “biodinâmica” na produção daquilo que seriam considerados vinhos “biológicos”, na ridícula terminologia corrente, não fosse o facto de Leroy rejeitar qualquer rotulagem a esse nível (interessa-lhe apenas a qualidade do produto final). Se há coisa que estes dois artistas/artesãos nunca fariam é trocar de lugar com quem quer que seja, porque os respetivos processos criativos são claramente individuais e únicos, não podem ser confiados a mais ninguém.
Um pormenor que não se deve negligenciar, mas que não vi referido em nenhuma abordagem ao livro, diz respeito ao facto de a aprendizagem descrita ser desigual. É certo que Davodeau aprende a provar vinhos, visita diferentes produtores, e conhece outros elementos importantes do mercado; enquanto Leroy lê muita BD, conhece autores, é convidado de festivais, e apreende todo o processo de produção de um livro. Mas Davodeau também participa da poda e pulverização da vinha, e na vindima; enquanto Leroy não tem qualquer papel na elaboração de BD. Talvez seja desculpável: não só a produção de vinho implica muito mais do que uma pessoa, e existem várias tarefas não-especializadas, para Leroy participar em BD do mesmo modo que Davodeau o ajuda na produção de vinho só se afiasse lápis… Participa, pois, enquanto inspiração (e personagem…) para este livro, algo que, por sua vez, Davodeau não pode reciprocar.
A empatia entre os dois criadores é fácil de entender, no sentido que Leroy representa um modo de estar numa atividade produtora que Davodeau retratara com admiração em “Rural!”, e é só pena o livro não vir acompanhado de uma garrafa do seu vinho. Não só pelos motivos óbvios, como para se tentar determinar de que modo se cruzam os estilos dos autores. Em “Les ignorants” Davodeau usa uma planificação o mais simples e linear possível (uma base de seis vinhetas por página em três filas de duas, com variações que se limitam à aglutinação de vinhetas), e um (excelente) desenho realista pormenorizado que, excetuando alguns momentos, quase se apaga numa finalização em aguada cinza. O objetivo é ser claro na descrição de processos e conceitos, fazer a história “falar”, iluminar ideias, trazer os leitores diretamente para a discussão, não os distraindo com malabarismos visuais. Era interessante ver se, por outros meios, o vinho de Richard Leroy tem o mesmo “objetivo”. Um pormenor importante sugere que sim: durante a vindima Leroy recusa recolher qualquer uva que contenha vestígios do fungo Botrytis, cuja presença concentra o açúcar, tornando o vinho mais doce. Apesar de se tratar de uma característica apreciada por alguns (e de esta seletividade lhe ir diminuir consideravelmente a produção) Leroy é intransigente: o seu Chenin blanc “Les Noels de Montbenault” é para ser seco e direto, não pretende usar “truques” como o Botrytis.
Claro que “Les ignorants” tem particular interesse para os amantes de banda desenhada pela visita guiada que Davodeau faz ao processo de criação e produção. Mas, sobretudo, pela aprendizagem de Richard Leroy, que se segue em paralelo com as diferentes tarefas necessárias para produzir vinho, todas importantes, mas de complexidade progressiva. Inicialmente reticente quanto ao potencial da banda desenhada (sim, esse sentimento também existe em França, só se nota menos) Leroy é surpreendido pelas leituras que Davodeau lhe indica (“Maus”, por exemplo), bem como pelos encontros e diálogos com alguns dos autores lidos, como Jean-Pierre Gibrat (“Le sursis”, “Matteo”), Emmanuel Guibert (“Le Photographe”, “La Guerre d’Alan”) ou Marc-Antoine Matthieu (“Les Aventures de Julius Corentin Acquefacques”). Uma aprendizagem que não deixa de ter momentos surpreendentes, como a recusa de Leroy em aceitar a qualidade de “Watchmen” ou Moebius (cuja posição de referência incontornável na BD francesa o deixa claramente perplexo).
Mas o momento mais emblemático (e hilariante) é dado por Lewis Trondheim (“Approximativement”), a quem Davodeau pede uma página para “responder” à apreciação negativa que Richard Leroy faz do seu estilo. Surgindo no primeiro quinto do livro, esta página, a única não realizada por Davodeau, também sinaliza de modo muito claro que, apesar de basear “Les ignorants” no desenvolvimento real de uma aprendizagem mútua, o autor subverte sem problema a linha temporal (a página de Trondheim surge logo a seguir aos comentários de Leroy sobre ele, o que é obviamente impossível) de modo a vincar um ponto de vista. É uma característica comum a todas as reportagens consequentes, e de resto a “defesa” de Trondheim enquadra-se na mensagem global que Étienne Davodeau tem planeada para este livro.
Em contraponto, é importante citar a intervenção de Nicoby, que Leroy e Davodeau encontram no festival de BD de Saint Malo. Muito menos conhecido que os restantes autores, e tendo mudado várias vezes de estilo e de registo à procura de algum sucesso (talvez tenha chegado com “Apple et Lemon”), em jeito de consciência externa Nicoby faz notar que, com Davodeau como cicerone, Leroy está, apesar de tudo, a conhecer o mundo da BD “por cima”, quando “em baixo” existem inúmeros autores com trabalho precário, que vivem de portfólio em portfólio, de recusa em recusa; aspetos que a iniciação de Davodeau ignora (até encontrar Nicoby…). É possível que Richard Leroy esteja num patamar semelhante no mundo do vinho (o seu trabalho é elogiado por Robert Parker, o maior, ou o mais temido, crítico mundial), mas, apesar de não faltarem debates sobre o mercado vitivinícola (entre os defensores de métodos mais químicos ou mais biológicos, por exemplo) nunca surge um “Nicoby do vinho”.
Finalmente, importa notar que “Les ignorants: Récit d’une initiation croisée” inclui uma certa duplicidade. Por um lado parece à primeira vista um modelo de interdisciplinaridade, no sentido em que dois criadores em atividades completamente distintas iniciam um diálogo que se traduz numa compreensão mútua e num trabalho de colaboração, embora este seja de sentido único (Leroy colabora clara mas indiretamente na BD, Davodeau não influencia o vinho). Mas esse diálogo só é possível porque os métodos, filosofias e processos criativos têm claros paralelismos, ao nível da dimensão, visão, e do controlo de qualidade que ambos exigem nas respetivas criações. O rigor de um na poda das videiras ou na ausência de Botrytis, é correspondido pelo rigor do outro na aprovação de provas de cor. E, fora alguns detalhes (com as polémicas em torno da utilização de enxofre como antioxidante) todos os produtores de vinho apresentados no decurso do livro assemelham-se a Leroy: prezam a sua independência, e a qualidade à quantidade. Do mesmo modo, Gibrat, Matthieu ou Guibert compartilham claramente com Davodeau a mesma filosofia-base em relação à banda desenhada.
Não é preciso muito para admitir uma grande proximidade conceptual, e claro que Davodeau planificou todo o seu trabalho neste livro para sublinhar isso mesmo, organizando sucessivas ligações vinho-BD, com uma profundidade crescente à medida que os dois protagonistas se vão imergindo nos respetivos universos cruzados, e são capazes de análises mais profundas e subtis. Uma reportagem nunca é neutra, e Davodeau defende aqui uma filosofia criativa (e produtiva) que claramente pretende ser global, transcendendo tanto o vinho como a BD.
Para além desse quase-manifesto, talvez a mensagem principal deste excelente livro seja pois que o diálogo entre disciplinas é possível, e pode ser extremamente fértil. Desde que, para além da abertura necessária para entender o Outro, a visão que os intervenientes tenham das respetivas disciplinas seja semelhante. E o mesmo é válido para as correspondentes ignorâncias, mais concretamente para a disponibilidade em as superar.
Por outras palavras, se de facto houvesse uma troca de lugar, provavelmente Leroy faria BD como Davodeau a encara, enquanto Davodeau seguiria um caminho muito comparável ao de Leroy na produção de vinho. Os estilos e sabores seriam distintos, mas a essência da abordagem não variaria muito. Talvez, desse ponto de vista, o excelente livro que é “Les ignorants” não represente uma interdisciplinaridade ideal. Mas é sem dúvida uma interdisciplinaridade útil. E será a interdisciplinaridade possível.
“Les ignorants: Récit d’une initiation croisée” ou “The Initiates: A Comic Artist and a Wine Artisan Exchange Jobs”, por Étienne Davodeau. 270 p. Futuropolis/NBM/Comics Lit, 2011 (2013 para a edição inglesa).