Os problemas da Solic foram tão traumatizantes para Nicolas Doucerain que (uma pequena) parte do esforço para a superar consistiu na escrita de um livro, Ma petite entreprise a connu la crise. Lehman, La crise et Moi (Lehman, a crise e eu) é a adaptação para banda desenhada desse livro, escrita por Étienne Alpert, com desenhos de Florent Papin. É uma obra simples, direta, e inclui um resumo temporal da odisseia da Solic, em paralelo com um calendário que descreve acontecimentos político-económicos importantes em França e no mundo, bem como um glossário. Privilegia a legibilidade e a clareza e pouco se desvia da linearidade clássica. Tem um desenho funcional, nada mais. Por outras palavras: dificilmente figurará numa lista de melhores BDs, seja a que nível for. Mas é um livro muito interessante pelo modo personalizado como aborda o tema, e recorda-nos que não podemos viver só de romances complexos, ou de meta-narrativas cheias de citações, com um grafismo inventivo ou deslumbrante. Por vezes são precisas obras que nos fazem refletir sobre o que dizem, não tanto sobre o modo como o dizem.
Neste caso uma notícia ouvida distraidamente sobre uma instituição obscura (a falência do Lehman Brothers) transforma-se numa espiral de caos e recessão à medida que empresas em dificuldades e com falta de liquidez deixam de requerer os serviços da Solic, uma PME familiar especializada na gestão e colocação de recursos humanos (“headhunting”). Note-se que a Solic não faliu, está sob administração judiciária e, embora em França apenas uma percentagem ínfima de empresas nessas circunstâncias (2-3 %) consiga em última instância sobreviver, o prognóstico (pelo menos em 2011) era esperançoso e positivo, algo que o simbolismo do nascimento de uma nova filha do narrador no final do livro vinca. Ou seja, esta é uma história de (aparente) sobrevivência que reconhece desde logo ter havido destinos piores com o mesmo conjunto de circunstâncias.
Neste caso o colapso levou ao despedimento de dois terços dos funcionários, e ao desmantelar de todas as sucursais da empresa fora de Paris. Um processo que se desenrola passo a passo, dos primeiros despedimentos tímidos (assumidos quase com incredulidade), à audiência em tribunal para evitar a falência, após meses de terapia de choque, e de aprendizagem forçada dos meandros legais e financeiros associados com a administração judiciária.
A narrativa adivinha-se mais interessante pela própria natureza da Solic, e do seu líder. Doucerain é um jovem executivo que herdou a empresa do pai, e que acredita plenamente no sistema financeiro, graças ao qual expandiu e consolidou um negócio próspero. Que esse mesmo sistema tenha “traído” um crente, obrigando-o a cortar naquele que é claramente o seu orgulho, e inclusive a despedir ambas as irmãs, é algo que toca fundo. De facto, e como nas melhores histórias autobiográficas deste tipo, a componente pessoal ajuda a fazer passar a mensagem, que pode não ser necessariamente aquela que o autor tinha em mente. Como exemplo paradigmático o maior momento de possível distração no meio da crise seria uma viagem familiar para assistir a um concerto de Michael Jackson, em Londres. Mas mesmo essa possibilidade é simbolicamente eliminada com a morte do cantor, sublinhando que nada corre bem à Solic. Olhando por outro prisma, é algo incrível que o narrador pareça não reparar que está disponível para um investimento destes, na mesma altura em que se prepara para despedir inúmeras pessoas. De resto, essa é uma sensação que perpassa todo o livro. Ninguém duvida que Nicolas Doucerain está generosa e genuinamente preocupado com os seus empregados (e nem todos na mesma situação terão tido o mesmo comportamento), ou que sacrificou o seu nível de vida, mas é preciso ver de onde para onde. Alguns desses sacrifícios poderão mesmo parecer irrisórios a quem vê de fora, como a necessidade da sua mulher voltar a trabalhar. Ou ainda o modo implacável como a Solic tenta evitar a falência mentido aos seus bancos (com a racionalização de que foram eles a colocar a empresa na situação em que está), ou deixando de pagar a fornecedores (com a racionalização pura do instinto de sobrevivência); ou seja, passando a crise “para baixo”, para pequenos negócios e empresas que dependiam da Solic, e para cujos responsáveis a leitura deste livro não será agradável. Sobre isso muito poucas palavras, como nunca se ouvem os funcionários despedidos (e se pensa no que lhes aconteceu), a não ser em momentos carregados de despedida. A sobrevivência é aqui isso mesmo, seja pessoal, seja empresarial.
Como disse logo ao início: Lehman, La crise et Moi é um livro interessante, não só pelo modo com explana de maneira acessível os resultados de crise financeiras globais ao nível de uma PME (e explica os mecanismos para lidar com eles em França), mas por ser uma leitura pessoal autobiográfica, com tudo de egocêntrico e autista que essas obras (também) têm.
Lehman, La crise et Moi, Étienne Alpert/Florent Papin, adaptando/adapting Nicolas Doucerain. La Boîte à Bulles, 2012 (13/20)
The problems with his company, and how he dealt with them, led Nicolas Doucerain to write a book on the topic, Ma petite entreprise a connu la crise. Lehman, La crise et Moi (Lehman, the Crisis and Me) is an adaptation of that book, written by Étienne Alpert and drawn by Florent Papin. It probably won’t make any “Best of” lists, but it is a clear and functional narrative, that also includes timelines (both for Solic, France and world politics) and a glossary. And, frankly, life has to be more than ambitious beautifully drawn graphic novels, full of references and meta-narratives. Sometimes the goal is to get information across, and have a reader think about the message, not how it is conveyed. There is nothing wrong with that.
The story reads as an uncontrollable spiral, from the moment a vague news item is heard on the car radio (the bankruptcy of the Lehman Brothers Bank), until the global lack of credit leads to the cancelling of contracts, pushing Solic, a prosperous family-owned human resources (“headhunting”) firm, to the brink of extinction. It its important to note that Solic did not go bankrupt, the book tells of its struggles to be placed under court administration and, although in France only very few companies (2-3 %) get back on their feet afterwards, the outlook presented is clearly optimistic in this case, as the birth of Doucerain’s daughter at the end clearly symbolizes. In short, the narrator knows that worse happened to others under the same circumstances.
In this case the result was the firing of two thirds of the employees and the closing of all offices outside Paris. A slow and painful process from the first, almost timid and incredulous, terminations, to the nerve wrecking months of learning about different options and preparing for the court hearing that might save what was left of the company.
The story in itself is that much more interesting because of the nature of Solic, and of its CEO. Doucerain is a young entrepreneur who inherited the company from his father, expanding it beyond his wildest dreams. He is a firm believer in the financial system that allowed him to do so. To have that very same system “betray” him, and cut into his proud creation (forcing him to even fire his own two sisters) clearly is a very bitter pill to swallow.
As in the best books of this type the autobiographical component gives a unique perspective into a global process, and often the message conveyed might not even be exactly the one the author intended. A great example of this is how the family prepares for a Michael Jackson concert in London, in order to get away from the chaos for a few days. The singer’s death derails the outing, and this is presented as just another way the owner of Solic can’t catch a break from the Universe. The irony that he is contemplating spending money he doesn’t have for such a purpose, on the eve of firing dozens of people, apparently doesn’t register. Indeed, this tone carries through the entire book. No one doubts Nicolas Doucerain is a generous boss, genuinely worried about his employees (and the same cannot be said to all in the same position). Or that he himself made personal sacrifices, but it’s clearly a matter of scale, and some of them lack the drama the narrator clearly thinks they convey (such as his wife having to go back to work). Another issue is how Doucerain prepares for the court administration hearing, by both lying to his banks (with the rationalization that it was the banks who caused the problem in the first place), and by using every ruse to avoid paying the bills (with a pure survivalist rationalization), thus “passing the crisis ball” down to other companies that depended on Solic. These issues are never openly dealt with, as we never hear from fired employees. In short: this book is about personal survival, both for a company, and for its CEO.
Lehman, La crise et Moi is therefore a very interesting read, not only because it explains how financial crises work and are dealt with in France, but mainly because it is an autobiographical narrative, carrying with it all the autistic egocentricity that these stories (also) entail.